Informa Rondônia Desktop Informa Rondônia Mobile

JURÍDICO DESCOMPLICADO
Direito Serpentino: Como Boiúna e Boitatá anteciparam o paradigma Saúde Única para enfrentar as Mudanças Climáticas

🛠️ Acessibilidade:

Cosmologias serpentinas antecipam o paradigma One Health e inspiram soluções jurídicas para a crise climática

Por Vinicius Miguel - segunda-feira, 08/09/2025 - 07h36

Conteúdo compartilhado 135 vezes

O conceito de One Health — Saúde Única — tornou-se paradigma central na governança ambiental contemporânea, reconhecendo a interconexão indissociável entre saúde humana, saúde animal e saúde dos ecossistemas.

Contudo, o que apresentamos como inovação científico-jurídica do século XXI representa, na verdade, redescoberta tardia de princípios jurídico-ambientais que as cosmologias indígenas da América Latina desenvolveram e aplicaram há milênios através de suas sofisticadas “jurisprudências serpentinas”.

Durante reflexões, pesquisa interdisciplinar e diálogos com comunidades indígenas do México ao Brasil, investigando sistemas normativos tradicionais aplicáveis ao direito das mudanças climáticas, descobri que as mitologias serpentinas constituem verdadeiros códigos jurídico-ambientais que operacionalizam e organizam, na prática, os princípios teóricos que nossa dogmática jurídica contemporânea ainda luta para implementar.

Personalidade Jurídica dos Ecossistemas: Lições de Quetzalcóatl

O conceito emergente de direitos da natureza — que reconhece personalidade jurídica a rios, florestas e ecossistemas — encontra antecedente jurisprudencial extraordinário na cosmologia nahua de Quetzalcóatl.

A “serpente emplumada” funciona como sujeito de direitos coletivos, que integra domínios terrestre, aquático e atmosférico em sistema jurídico holístico.

Quetzalcóatl tem direitos próprios, seja o direito ao tempo cíclico, o direito ao equilíbrio ou o direito à continuidade.

Quando humanos violam esses direitos, vêm a consequência: secas, tempestades, doenças.

Enquanto nosso direito positivo opera temporalidade linear — norma, fato, sanção —, o direito serpentino opera temporalidade cíclica que incorpora princípio da responsabilidade intergeracional de forma concreta e inarredável: decisões presentes consideram impactos em sete gerações futuras.

Esta abordagem temporal oferece ferramentas jurídicas cruciais para o direito das mudanças climáticas.

O tempo Quetzalcóatl antecipa a conhecida fórmula “presente e futuras gerações”.

Governança Hídrica Sistêmica: O Paradigma Amaru-Boiúna

A crise hídrica global, intensificada de sobremaneira pelas mudanças climáticas, expõe limitações do modelo jurídico que trata água como res nullius ou propriedade privada.

As cosmologias andino-amazônicas de Amaru e Boiúna desenvolveram sistemas de governança hídrica baseados em reconhecimento da personalidade jurídica das águas e suas interrelações sistêmicas.

No Cusco, outrora, o Amaru funcionava como ente regulador em liturgias e protocolos de consulta hidro-jurídica, de modo que as decisões sobre uso da água exigiam “audiência” com espíritos serpentinos, que representavam diferentes componentes do sistema hídrico.

Este modelo operacionaliza princípios jurídicos avançados, antecipando uma gestão integrada de recursos hídricos, propondo uma governança adaptativa e eco-sistêmica.

A autoridade normativa e o processo decisório não derivariam de única imposição estatal, mas de legitimidade baseada em conhecimentos climáticos e espirituais dos ciclos hidrológicos e capacidade demonstrada de manter equilíbrio hídrico ao longo de séculos.

Na Amazônia brasileira, a Boiúna representa evolução ainda mais sofisticada: governança jurídica multidimensional que reconhece múltiplas realidades simultâneas dos sistemas hídricos.

Esta ontologia múltipla oferece instrumentos para superar limitações dos olhares monocráticos.

A Boiúna demonstra possibilidade de sistemas normativos adaptativos que reconhecem a natureza processual e transformativa dos fenômenos ecológicos.

Boiúna é a serpente do fundo dos rios. Pode modificá-los, remetendo à impermanência existencial e à mutação hidrológica.

Boiúna é mulher. Causa tempestades e trovões. Seduz humanos. E modifica o curso das águas.

Regulação do Fogo: Boitatá e o Direito Climático

As mega queimadas que devastam anualmente a Amazônia e o Cerrado revelam inadequação de instrumentos jurídicos baseados exclusivamente em comando e controle.

O Boitatá oferece modelo alternativo de regulação ígnea baseado em qualificação jurídica do fogo segundo critérios ecológicos e intencionais.

Nas Amazônias, conhecedores tradicionais mantêm sistema normativo costumeiro que distingue “fogo bom” de “fogo ruim”, aquele predatório e destrutivo.

Este sistema sugere a possibilidade de regulação qualitativo-moral do fogo, que supera dicotomia simplista entre proibição absoluta e liberação desregulamentada.

A jurisprudência Boitatá desenvolveu metacritérios normativos sofisticados e aplicados: temporalidade (época adequada), intencionalidade (propósito regenerativo), proporcionalidade (escala apropriada) e responsabilidade (assumir consequências).

Para um vindouro direito das mudanças climáticas, esta abordagem oferece ferramentas para regulação adaptativa de práticas que podem ser simultaneamente benéficas e prejudiciais segundo contexto e modalidade de implementação.

O Boitatá demonstra possibilidade de normas ecológicas situacionais, que respondem com proporcionalidade à complexidade dos sistemas ecológicos.

One Health Ancestral: Integração Sistêmica Saúde-Ambiente

O paradigma One Health fundamenta-se no reconhecimento de que saúde humana, saúde animal e saúde ambiental constituem sistema integrado. As cosmologias serpentinas operacionalizam esta compreensão através de sistemas normativos integrados que regulam simultaneamente práticas médicas, manejo ambiental e organização social.

Esta integração normativa oferece modelo para regulação One Health que supere as ineficazes compartimentalizações administrativas e conflitos de competência, que caracterizam a atual governança sanitário-ambiental.

Considerandos Futuros

O Direito Serpentino ensina que o humano só existe em coabitação, na interligação com a terra, com as águas, com os animais e com o tempo.

Não há saúde sem floresta, não há futuro sem rios, não há justiça sem reconhecer a dignidade do mais-que-humano.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





COMENTÁRIOS: