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JURÍDICO DESCOMPLICADO
A reinvenção social da infância: como o Brasil redefine a proteção de crianças na era digital

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Novo Estatuto Digital amplia garantias e reconhece a infância híbrida entre o físico e o virtual

Por Vinicius Miguel - sexta-feira, 19/09/2025 - 09h37

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Há 35 anos, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente foi promulgado, vivíamos sob uma concepção de infância diferente da atual. A criança era vista como um sujeito que habitava espaços físicos bem delimitados — a casa, a escola, a rua do bairro. Hoje, essa mesma criança transita simultaneamente entre múltiplas realidades: o mundo físico e inúmeros ambientes digitais que reconfiguram não apenas onde ela está, mas fundamentalmente quem ela é.

A publicação do Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ontem em 17 de setembro de 2025) marca mais uma evolução legislativa. Representa uma metamorfose antropológica na forma como a sociedade brasileira compreende e protege suas crianças. É o reconhecimento de que a infância contemporânea é uma experiência híbrida, onde o digital é uma ferramenta, um meio de interação social e um território existencial.

A Criança como Sujeito Híbrido

Durante as últimas décadas, sob o ECA, a proteção da infância se organizou em torno de espaços físicos controlados. Pais e mães, escolas e comunidades criavam círculos concêntricos de proteção baseados na proximidade e no controle visual. A criança que saía de casa estava “na rua”; a que estava em casa estava “segura”. Aparatos de cibervigilância e monitoramento, como as “babás eletrônicas” proliferaram nas classes sociais de maior capacidade econômica.

Essa arquitetura protetiva entrou em colapso com a digitalização da infância. Uma criança de 8 anos pode estar fisicamente na sala de casa, sob o olhar presencial ou observado eletronicamente de mães e pais, mas, existencialmente em contato com desconhecidos do outro lado do mundo. Pode ser simultaneamente vulnerável e empoderada, protegida e exposta, local e global.

O Estatuto Digital desnuda essa realidade perante o mundl jurídico. A proteção não pode mais se basear apenas em fronteiras físicas; deve criar “arquiteturas de proteção” incorporadas às próprias tecnologias. A privacidade por padrão e a proibição do perfilamento comercial de crianças e adolescentes são tentativas de domesticar o ambiente digital, tornando-o um espaço mais seguro e, quiçá, passível de responsabilização.

Rituais de Iniciação Digital

Tradicionalmente, as sociedades humanas criam rituais de passagem para marcar a transição da infância para a vida adulta. No Brasil digital contemporâneo, essa iniciação acontece de forma desordenada e precoce: a criança ganha um smartphone aos 10 anos e, da noite para o dia, passa a ter acesso ao mesmo universo informacional dos adultos.

O que observamos é uma iniciação digital sem ritual; sem preparação, sem proteções adequadas. É como se entregássemos as chaves de uma motocicleta para uma criança de 10 anos, esperando que ela aprenda a dirigir sozinha no trânsito de São Paulo (ou outra megalópole qualquer). E sem lembrá-la de usar capacete! O Estatuto Digital tenta criar um equivalente aos rituais de proteção tradicionais no ambiente digital. A verificação robusta de idade, por exemplo, serve como uma barreira técnica e uma tentativa de criar fronteiras simbólicas entre mundos infantis e adultos que a tecnologia borrou.

A Mercantilização da Atenção Infantil

Uma das transformações mais profundas da infância contemporânea é sua conversão em mercadoria digital. Crianças não são apenas usuárias de plataformas; são produtos vendidos para anunciantes através de seus dados comportamentais, padrões de atenção e vulnerabilidades psicológicas. São mais ainda, elementos que fornecem, inconscientemente, dados para a formatação de algoritmos que serão utilizados para expor, depois, produtos para o consumo infantil. Isso representa uma ruptura antropológica.

Pela primeira vez na história humana, a atenção infantil se tornou uma commodity global, comercializada em tempo real. Algoritmos estudam e se apropriam dos interesses de uma criança de 7 anos para vendê-la brinquedos… E também podem expô-la a conteúdos inadequados ou predadores e outros tantos riscos sociais. A proibição da publicidade direcionada e do perfilamento comercial de menores no Estatuto Digital é mais que uma medida regulatória. É uma tentativa de “decomodificar” a infância, restituindo à criança um espaço de desenvolvimento não mediado por interesses comerciais.

Parentalidade Aumentada

A tecnologia está reconfigurando as práticas parentais. Os pais/mães de hoje exercem uma “parentalidade aumentada”. Precisam, imediatamente, proteger seus filhos de perigos físicos e de riscos que, eles próprios, muitas vezes não compreendem e não sabem se defender. Surge (mais) um paradoxo: pais/mães que cresceram sem internet precisam educar filhos nativos digitais sobre riscos digitais. É como se tivéssemos que ensinar uma língua que não dominamos, navegar territórios que não conhecemos. O Estatuto Digital reconhece essa assimetria ao exigir consentimento parental informado. Avança ao criar uma autoridade reguladora que assume parte da responsabilidade protetiva que antes recaía exclusivamente sobre as famílias. É uma socialização da proteção digital, reconhecendo que a tarefa é grande demais para ser deixada apenas aos mercado ou tão somente aos responsáveis das crianças e adolescentes.

Vigilância Protetiva vs. Autonomia Infantil

Um dos dilemas mais complexos da proteção digital é o equilíbrio entre vigilância protetiva e desenvolvimento da autonomia infantil. Isso se ignorarmos a questão, também tênue e tensa de privacidade, como também de censuras prévias. Crianças precisam de espaços para errar, experimentar, construir e validar suas identidadea, mesmo digitalmente. O risco é criarmos uma “infância de vidro”, onde cada clique é monitorado, cada interesse registrado, cada movimento digital supervisionado. Isso pode proteger de riscos imediatos, mas compromete o desenvolvimento da capacidade de navegação autônoma no mundo. O Estatuto Digital tenta resolver essa tensão através de proteções sistêmicas (“privacy by design”) em vez de vigilância individual. A ideia é tornar o ambiente digital mais seguro, não necessariamente mais vigiado. O Estatuto Digital representa o reconhecimento institucional dessa nova ontologia de sujeitos infantis. Não se tenta (nem se conseguiria!) fazer a infância digital voltar ao que era antes (impossível), nem a deixa completamente desprotegida (irresponsável). Busca criar um novo contrato social entre sociedade, tecnologia e infância.

Os Futuros da Proteção

Estamos inventando novas formas de ser criança e novas formas de proteger crianças. O teste do Estatuto Digital será se conseguirá influenciar não apenas o comportamento das empresas, como as próprias práticas familiares, escolares e comunitárias de cuidado com a infância. Do contrário, sem mudanças nos padrões sociais de aprendizagem, de experimentação e de vivência, as vulnerabilidades no âmbito físico ou digital, se perpetuarão.

Confira a lei na íntegra: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/lei/L15211.htm

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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