Entre o corpo do governante e o corpo colonizado, o ensaio examina como a doença se tornou instrumento de poder, revelando a anatomia política do sofrimento ao longo da história
Dr. Vinicius Raduan Valentin Miguel / Dr. Rafael Ademir Oliveira de Andrade
As relações entre doença e poder político são, há muito, um tema subjacente nas ciências humanas, mas raramente abordadas de forma sistemática. O corpo do governante, o corpo social e o corpo colonizado constituem, em diferentes escalas, metáforas da soberania e da vulnerabilidade. Desde a questão do biopoder debatido em Foucault até o pensamento de Darcy Ribeiro (em Convívio e Contaminação), a doença e os corpos são instrumentos de controle sobre sociedades inteiras.
Entre o fim do século XX e o início do XXI, três obras se destacam por abordar esse cruzamento entre biologia, política e história:
- When Illness Strikes the Leader: The Dilemma of the Ill Not Being Able to Rule (Jerrold M. Post & Robert S. Robins, 1995), que investiga o impacto das doenças físicas e mentais de chefes de Estado sobre a estabilidade institucional;
- Epidemics and History: Disease, Power and Imperialism (Sheldon Watts, 1999), que reconstrói o papel das epidemias na formação e manutenção de impérios;
- Maladies of Empire: How Colonialism, Slavery, and War Transformed Medicine (Jim Downs, 2021), que demonstra como a própria medicina moderna se forjou na violência imperial e escravocrata.
Essas três obras, lidas em sequência, traçam uma verdadeira genealogia da biopolítica moderna, do governante enfermo ao corpo coletivo administrado, e deste ao corpo colonizado explorado como laboratório do saber científico.
Livro 1: When Illness Strikes the Leader: The Dilemma of the Ill Not Being Able to Rule (1995)
Jerrold M. Post, psiquiatra e fundador do Center for the Analysis of Personality and Political Behavior da CIA e o cientista político Robert S. Robins partem de uma premissa simples, mas poderosa: a doença do líder é um evento político. O livro analisa como enfermidades mentais e físicas afetam decisões estratégicas, sucessões e percepções públicas do poder. Entre os casos mais notórios, o livro dedica capítulos inteiros a:
Woodrow Wilson, presidente dos EUA, que em 1919 sofreu um acidente vascular cerebral durante as negociações do Tratado de Versalhes. A incapacidade resultante foi ocultada do público, e sua esposa Edith Wilson passou a filtrar decisões, redigir despachos e administrar acessos, criando o que muitos historiadores chamam de “primeira presidência feminina oculta”. O episódio expôs a ausência de mecanismos constitucionais claros para lidar com a incapacidade presidencial e inspirou, décadas depois, a 25ª Emenda da Constituição norte-americana (1967).
Adolf Hitler, cuja progressiva dependência de metanfetaminas e barbitúricos, ministrados pelo médico Theodor Morell, é examinada em detalhes. Post e Robins descrevem sintomas de paranoia, tremores e delírios messiânicos, que se intensificaram após 1943. Essa deterioração coincide com decisões estratégicas desastrosas, como a insistência em não permitir retiradas táticas, a invasão suicida da Rússia e a recusa em negociar a rendição de Berlim.
Ferdinand Marcos, das Filipinas, sofrendo de lúpus sistêmico eritematoso, usou morfina e corticoides em excesso, afetando seu discernimento e aparência. O governo ocultou seu estado, enquanto o país mergulhava em corrupção e repressão. A doença tornou-se metáfora da “patologia do regime”. Deng Xiaoping, já octogenário, enfrentou declínio cognitivo e auditivo, o que influenciou o processo de transição política na China pós-Mao, revelando o peso simbólico do envelhecimento no autoritarismo comunista.
A originalidade da obra está em fundir psicologia clínica e teoria política. O adoecimento, segundo os autores, desestabiliza a “persona de poder” e fragiliza o Estado-persona: um conceito herdado de Carl Gustav Jung e de Harold Lasswell. O livro sugere que o líder é o espelho somático da nação: sua vitalidade corporal projeta legitimidade; sua decadência física simboliza colapso político.
Livro 2: Epidemics and History: Disease, Power and Imperialism (1999)
Quatro anos depois, o historiador britânico Sheldon Watts desloca o foco do indivíduo para a sociedade, em uma abordagem mais ampla e interdisciplinar. Seu livro, também publicado pela Yale University Press, articula história, medicina e teoria política, examinando como epidemias moldaram estruturas de poder e hierarquias imperiais do século XIV ao XX. Watts apresenta uma série de estudos de caso concretos:
A peste bubônica na Europa (séculos XIV–XVII), que levou à criação dos “cordões sanitários”, dos lazaretos e das quarentenas marítimas em cidades como Veneza e Marselha. Esses mecanismos, embora médicos em aparência, serviam para controlar populações pobres e minorias étnicas, instaurando o que o autor chama de “proto-vigilância do corpo social”. O cólera nas colônias britânicas da Índia (século XIX), usado como justificativa para intervenções militares e reformas urbanas coercitivas. A resposta médica britânica, segundo Watts, reproduzia hierarquias raciais: bairros coloniais de europeus eram saneados, enquanto os de indianos eram cercados e policiados.
A febre amarela nas Américas, associada a africanos escravizados e imigrantes pobres, legitimou políticas de segregação sanitária e militarização portuária em Havana, Rio de Janeiro e Nova Orleans. A AIDS, na virada do século XX, reaparece como paradigma de “doença moralizante”, na qual discursos religiosos e políticos convergem para criminalizar corpos marginalizados.
Watts recorre à noção foucaultiana de biopoder, mostrando que o Estado moderno não governa apenas pela lei, mas pela administração da vida e da morte. As epidemias revelam o poder como tecnologia médica e disciplinar. Em suas palavras, “as doenças não apenas matam; elas legitimam” frase que resume o argumento central do livro e nos dão o tom dos usos sociais da doença.
Livro 3: Maladies of Empire: How Colonialism, Slavery, and War Transformed Medicine (2021)
Mais de duas décadas após Watts, o historiador americano Jim Downs oferece uma contribuição decisiva: revelar como a medicina científica ocidental nasceu do sofrimento colonial. Publicada pela Harvard University Press, a obra faz uma arqueologia das origens da epidemiologia e da medicina tropical, demonstrando que a violência imperial foi o laboratório onde se consolidou a noção moderna de “saúde global”. Downs utiliza fontes documentais e médicas inéditas, e sua narrativa é pontuada por casos concretos impressionantes:
Navios negreiros e o escorbuto: ao investigar o escorbuto entre marinheiros e escravizados, médicos europeus realizaram experimentos alimentares brutais em navios do Atlântico. As observações sobre carência de vitamina C tornaram-se a base da fisiologia nutricional moderna.
A gripe e o império britânico: registros militares mostram que, durante campanhas coloniais, doenças respiratórias eram tratadas de modo diferencial conforme a raça e a origem dos soldados, com negros e indianos servindo de “controle humano” para testes de resistência.
AS ÚLTIMAS OPINIÕES
Haiti e o Caribe como laboratórios: nos séculos XVIII e XIX, médicos franceses e britânicos estudaram febres tropicais em populações escravizadas, usando-as para desenvolver teorias sobre imunidade e contágio. Essa experimentação fundou a epidemiologia estatística, mas apagou deliberadamente as vítimas da narrativa científica.
A Guerra Civil americana (1861–1865): o exército da União coletou dados sobre disenteria e febre tifóide em soldados e ex-escravizados. Esses relatórios foram o embrião do Serviço de Saúde Pública dos EUA, o primeiro órgão de vigilância epidemiológica do mundo.
O mérito de Downs é reconectar ciência e poder. Ele demonstra que o conhecimento médico europeu foi produzido a partir de assimetria racial e sofrimento humano, em uma cadeia contínua entre escravidão, guerra e pesquisa. Sua obra ecoa e radicaliza Watts: não apenas o poder governa pela doença, mas a própria ciência médica é uma expressão do poder imperial e de poder em geral (quando trazemos a discussão para os dias atuais).
Considerações finais
As três obras convergem em uma mesma intuição: a saúde e a doença são categorias políticas. O corpo, seja ele real ou simbólico, é o campo onde se decide quem pode governar, quem deve ser protegido e quem pode ser sacrificado.
Se When Illness Strikes the Leader mostra o governante debilitado, Epidemics and History expõe o Estado higienista, e Maladies of Empire revela a ciência imperial que naturalizou a dor dos subalternos.
Em conjunto, elas traçam uma anatomia do poder moderno: o soberano que adoece, o império que cura para dominar, e a ciência que transforma sofrimento em conhecimento.
O corpo político, individual, social e colonial, emerge, assim, como o verdadeiro paciente da história, corpo este que se torna mais vulnerável na medida em que seu portador – o sujeito histórico – acumula mais ou menos poder em suas formas de manipulação.

*ESCRITO EM COAUTORIA COM RAFAEL ADEMIR OLIVEIRA DE ANDRADE
SOBRE:
Sociólogo, Doutor em Desenvolvimento Regional, Coordenador do Laboratório de Estudos em Populações Negligenciadas (Afya Porto Velho) e professor permanente do PPG em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente (UNIR).
Referências
POST, Jerrold M.; ROBINS, Robert S. When Illness Strikes the Leader: The Dilemma of the Ill Not Being Able to Rule. New Haven: Yale University Press, 1995.
WATTS, Sheldon. Epidemics and History: Disease, Power and Imperialism. New Haven: Yale University Press, 1999.
DOWNS, Jim. Maladies of Empire: How Colonialism, Slavery, and War Transformed Medicine. Cambridge: Harvard University Press, 2021.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 2014.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 Edições, 2018.
ROSENBERG, Charles E. The Cholera Years: The United States in 1832, 1849, and 1866. Chicago: University of Chicago Press, 1987.
