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JURÍDICO DESCOMPLICADO
O concurso da ALE-RO: poder e a refundação do Estado

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De 2013 a 2025, uma década de judicialização, coerção e pactuação transformou o Legislativo rondoniense em laboratório da transição entre o poder político-clientelista e a racionalidade jurídico-burocrática

Por Vinicius Miguel - terça-feira, 04/11/2025 - 08h39

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A abertura do concurso público da Assembleia Legislativa de Rondônia (ALE-RO), em dezembro de 2025, é uma etapa de mais de uma década de disputas institucionais.

Mais que um certame burocrático, representa a emergência de um novo regime de verdade sobre o Estado: a gradual substituição da lógica patrimonial-clientelista pela racionalidade jurídico-burocrática.

O Ministério Público, o Tribunal de Contas, o Judiciário e até o Supremo Tribunal Federal atuaram como agentes produtores dessa normatividade, impondo progressivamente o princípio do mérito sobre o privilégio pessoal-político.

Esse processo só se torna inteligível através das lentes teóricas de Michel Foucault, Pierre Bourdieu e Marcel Mauss, para quem o Estado é simultaneamente campo de poder, forma simbólica e dispositivo de governamentalidade.

A análise que se segue demonstra como saberes jurídicos, capitais simbólicos e reciprocidades morais convergiram para transformar a estrutura administrativa de uma instituição resistente à mudança.

1. Governamentalidade e o Novo Regime de Verdade

Michel Foucault, em Segurança, Território, População e Nascimento da Biopolítica, descreveu o Estado como rede de práticas e saberes que conformam o governo dos homens.

O Estado é efeito de poder, conjunto de técnicas e discursos que produzem obediência e administram a norma.

Na ALE-RO, o predomínio de cargos comissionados traduzia um poder disciplinar difuso, exercido mediante dependência política, obediência clientelista e subordinação personalista: o cargo como troca.

O concurso público rompe essa lógica ao introduzir o princípio foucaultiano de “governar por normas”, não por exceções.

A judicialização foi o mecanismo pelo qual o saber jurídico se impôs como novo regime de verdade, deslocando o foco do arbítrio para a normatividade.

O primeiro concurso, realizado em 2018 com 110 vagas preenchidas até 2021, representou uma adequação inicial, porém insuficiente diante da magnitude do problema estrutural.

O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de 2024 e a Lei Complementar nº 1.237/2024 marcam a institucionalização definitiva dessa transição.

Agora, a oferta de mais de 400 vagas em dezembro de 2025 materializa a passagem da disciplina à governamentalidade: o poder que antes se exercia pela relação pessoal agora operará pela regra e pelo dispositivo jurídico.

2. O Campo Burocrático e a Luta pela Legitimidade Simbólica

Pierre Bourdieu, em Sobre o Estado, descreve o Estado moderno como resultado de uma disputa entre diferentes campos, político, jurídico, econômico e burocrático, pelo monopólio da violência simbólica legítima.

A história institucional da ALE-RO entre 2013 e 2025 exemplifica essa luta entre dois princípios de legitimação: o capital político, sustentado em relações pessoais e indicações; e o capital burocrático, fundado no mérito e na neutralidade formal decorrente do recrutamento via concurso.

As ações civis, decisões judiciais e acórdãos do Tribunal de Contas constituem episódios dessa batalha simbólica.

A cada decisão, o campo jurídico-burocrático expropriou uma fração de poder simbólico do campo político.

O concurso de 2018, embora tenha provido 110 cargos efetivos entre 2018 e 2021, não alterou substancialmente a correlação de forças: tratou-se de uma concessão tática, não de uma mudança estrutural.

As multas aplicadas pelo TCE, a declaração de inconstitucionalidade pelo STF e, finalmente, o TAC representam momentos em que essa transferência se institucionaliza.

O novo concurso, com mais de 400 vagas, soma-se como exigência constitucional. E se conforma em rito de consagração do capital burocrático sobre o capital político.

Ao substituir as indicações de comissionados pela aprovação em certame, o Estado opera uma reconversão simbólica de suas próprias bases de legitimidade.

3. O Estado como Forma Simbólica e Reciprocidade Moral

Marcel Mauss, em Ensaio sobre a Dádiva, demonstra que toda sociedade se estrutura sobre sistemas de reciprocidade: dar, receber e retribuir.

O Estado moderno (e contemporâneo) não escapa a essa lógica: ele comanda, mas propõe e devolve reconhecimento, carecendo de uma base de convencimento e legitimidade.

A abertura do concurso público transcende o cumprimento de sentença: é o rito de reconciliação simbólica entre o Estado e seus cidadãos.

O Estado, aqui, no âmbito do Legislativo Estadual, oferece igualdade de acesso, a dádiva moderna, e, em troca, espera confiança política e legitimidade social.

Essa reciprocidade maussiana explica por que o ato administrativo de abrir inscrições tem dimensão moral: restaura a crença coletiva na impessoalidade, na previsibilidade e na justiça das instituições.

Se o concurso de 2018 inaugurou simbolicamente essa nova relação, a oferta de mais de 400 vagas em 2025 consolida-a em escala ampliada.

Ao transformar a legalidade em valor compartilhado, o concurso opera como ato de refundação da autoridade legítima.

O Estado, nessa senda, o Parlamento rondoniense, ao cumprir suas próprias normas, resgata simbolicamente o pacto com a Constituição e com a sociedade civil, demonstrando que a racionalidade burocrática pode coexistir com a responsividade democrática.

4. Conclusão: O Estado como Campo em Permanente Disputa

A trajetória da ALE-RO entre 2013 e 2025 revela que o Estado não é estrutura estática, faz-se campo em disputa permanente e passível de tensões e dinâmicas intrainstitucionais.

Foucault nos afirma que ele governa ao normatizar; Bourdieu, que se consolida ao legitimar; Mauss, que sobrevive ao ser reconhecido!

A abertura do concurso de dezembro de 2025 é efeito visível de uma transformação invisível do poder.

O saber jurídico, o controle externo e o controle judicial reconfiguraram o modo de governo, substituindo a pessoalidade pela norma, o privilégio pela regra e conveniência pelo dever.

Se o concurso de 2018 representou um primeiro movimento nessa direção, o de 2025, quase quatro vezes maior em vagas, marca a consolidação dessa nova estruturação do Parlamento.

Resta-nos observar se essa vitória da racionalidade jurídico-burocrática se sustentará no longo prazo ou se novas formas de apropriação política emergirão dentro da própria estrutura concursada.

Afinal, como nos ensina Bourdieu, todo campo busca reproduzir suas hierarquias, mesmo sob novas roupagens.

O concurso público resolve o problema da forma, todavia, a substância do exercício do poder permanece como questão aberta.

Como desafio permanente à consolidação democrática das instituições brasileiras estão a profissionalização, a igualdade de oportunidades de acesso e as rupturas das formas de clientelismo e mandonismo.

Linha do Tempo Analítica (2013–2025)

FASE I: JUDICIALIZAÇÃO E QUESTIONAMENTO (2013-2019)

2013 – Judicialização do problema estrutural

O MP/RO propõe Ação Civil Pública (Proc. 0005934-93.2013.8.22.0001), denunciando o excesso de comissionados e exigindo que ao menos 50% dos cargos em comissão sejam ocupados por efetivos.

→ Movimento: Introdução da racionalidade jurídica no campo político.
→ Resultado: Primeira intervenção judicial direta sobre a estrutura administrativa da ALE-RO.

2016 – Questionamento constitucional

O TJ/RO (1ª Câmara Especial) suscita arguição de inconstitucionalidade da norma estadual que fixava apenas 20% de efetivos.
→ Movimento: O Judiciário reconhece o descompasso entre norma local e princípio constitucional da impessoalidade.
→ Resultado: Encaminhamento ao Pleno, iniciando revisão normativa.

2018 – Primeira resposta institucional: concurso inaugural

A ALE-RO lança o Edital n.º 01/2018, primeiro concurso público em décadas, ofertando 110 vagas em resposta ao contexto de judicialização.
→ Movimento: Ação reativa da instituição, sinalizando adequação parcial e tentativa de conter a pressão judicial.
→ Resultado: Concurso homologado e provimento iniciado.

2018-2021 – Nomeações graduais do primeiro concurso

As 110 vagas do concurso de 2018 são preenchidas progressivamente ao longo de três anos.
→ Movimento: Incorporação lenta de servidores efetivos, mantendo ainda o desequilíbrio estrutural.
→ Resultado: Mudança simbólica, mas insuficiente para alterar a correlação de forças entre efetivos e comissionados.

2019 – Declaração de inconstitucionalidade

O TJ/RO (Pleno) declara inconstitucional a norma dos 20%, exigindo paridade real entre efetivos e comissionados.
→ Movimento: Fundamento jurídico consolidado para exigência de novo concurso ampliado.
→ Resultado: Ampliação da legitimidade judicial sobre a gestão interna da ALE-RO e constatação de que o concurso de 2018 foi insuficiente.

FASE II: COERÇÃO ADMINISTRATIVA (2019-2023)

Agosto/2019 – Controle administrativo

O TCE/RO proíbe o pagamento de benefícios a servidores não concursados.
→ Movimento: Aplicação da coerção administrativa e moralização do gasto público.
→ Resultado: Limitação prática das vantagens dos comissionados.

Janeiro/2020 – Plano de adequação obrigatório

O TCE/RO (Pleno) determina, pelo Acórdão APL-TC 00021/2020, a redução de cargos comissionados e apresentação de plano de adequação.
→ Movimento: Imposição de parâmetros quantitativos e prazos institucionais, reconhecendo que as 110 vagas de 2018 não resolveram o problema.
→ Resultado: Início da pressão coercitiva sistemática sobre o Legislativo.

Abril/2022 – Intervenção constitucional do STF

O STF julga a ADI 6963, declarando inconstitucional a criação de cargos comissionados técnicos.
→ Movimento: Reforço da hierarquia constitucional e homogeneização do discurso jurídico nacional.
→ Resultado: Extinção de cargos ilegais e readequação estrutural obrigatória.

2023 – Sanção por descumprimento

O TCE/RO aplica multa ao então presidente da ALE-RO (Acórdão APL-TC 00181/2023).
→ Movimento: Concretização da responsabilização individual.
→ Resultado: Aumento da eficácia coercitiva do controle externo.

FASE III: PACTUAÇÃO E EXECUÇÃO (2024-2025)

Maio/2024 – Acordo judicial (TAC)

O TJ/RO e o MP/RO firmam TAC obrigando novo concurso até julho de 2024, reconhecendo que as 110 vagas de 2018 foram insuficientes, e estabelecendo a necessidade de ao menos 300 novas vagas e exoneração de 800 comissionados.
→ Movimento: Consolidação da cooperação interinstitucional entre campos jurídico e político.
→ Resultado: Compromisso formal e coercitivo de adequação definitiva.

Junho/2024 – Criação de cargos efetivos

A ALE-RO promulga a LC n.º 1.237/2024, criando 248 cargos efetivos.
→ Movimento: Reação legislativa institucionalizada.
→ Resultado: Ajuste parcial e preparação normativa para novo certame de grande porte.

Setembro/2024 – Monitoramento do TCE

O TCE/RO edita a Decisão Monocrática 0184/2024-TCE/RO, sobrestando o processo por 180 dias.
→ Movimento: Último estágio do controle coercitivo antes da execução.
→ Resultado: Condição clara: publicação do edital ou aplicação de sanção.

29 de Outubro de 2025 – Lançamento do Edital

A ALE-RO, em parceria com a FGV, publica edital para concurso a ser realizado em dezembro de 2025.
→ Movimento: Concretização da transição institucional.
→ Resultado: Conformidade formal atingida e encerramento do ciclo coercitivo.

Dezembro de 2025 – Oferta de mais de 400 vagas

São ofertadas mais de 400 vagas, quase quatro vezes o número do concurso de 2018, marcando a transformação estrutural definitiva da ALE-RO.
→ Movimento: Execução do pacto burocrático em escala ampliada.
→ Resultado: Início efetivo do provimento massivo de cargos de carreira e fechamento do ciclo histórico iniciado em 2013.

Referências

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: cursos no Collège de France (1989–1992). Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 17. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso no Collège de France (1977–1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso no Collège de France (1978–1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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