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ENTRE LINHA E MARGENS
Josepha, a Feiticeira nos anais do Judiciário, e a Porto Velho invisibilizada

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Um caso judicial do início do século XX revela o choque entre saberes populares e poder institucional em Porto Velho, expondo silenciamentos religiosos, desigualdades sociais e a resistência feminina na construção cultural da cidade

Por Cammy Lima - terça-feira, 25/11/2025 - 11h56

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No início do século XX, Porto Velho ainda era uma cidade à margem do desenvolvimento pleno — para muitos, ainda é. Uma cidade marcada por desigualdades sociais, precariedade nos serviços públicos e isolamento geográfico. Mesmo depois de mais de um século, ainda se respira a atmosfera de um espaço de fronteira.

Naquela época, os ritmos da vida se misturavam entre a memória da borracha, a chegada de migrantes, a economia local incipiente e a construção de instituições ainda frágeis. Nesse cenário, figuras como Josepha surgem não apenas como personagens de um processo judicial, mas como testemunhos vivos da complexa trama social e cultural da época.

No cenário de reflexões que emergem em meio à memória da cidade, Josepha se apresenta como uma presença inquietante: viúva, analfabeta, nordestina, oriunda de uma camada social à margem. No entanto, dentro de sua comunidade, detinha um saber profundo e singular — práticas mágicas, benzimentos e rituais herdados de mulheres de Manaus, transmitidos oralmente e aplicados com um propósito evidente: o bem-estar das pessoas e a resolução de problemas que a sociedade formal jamais conseguia enfrentar.

A sua trajetória cruza os registros jurídicos de Rondônia, não pela notoriedade ou pelo crime, mas pela suspeita que pairava sobre atos comuns em sua tradição, vistos com desconfiança por olhares preconceituosos, por conta da sua religião, sua cor e condição social.

A FEITICEIRA

Conhecida por muitos como “feiticeira”, ela não buscava o mal, mas intermediações com o mundo espiritual para resolver problemas da comunidade, aliviar doenças e buscar justiça para aqueles que sofreram perdas, como no caso de Manoel, cuja morte ela tentou reverter simbolicamente através de rituais com cebola.

Um episódio, que insiste em estar vívido, registrado, mas pouco procurado, revela como foi parar no tribunal da justiça dos homens, no solo de Rondônia. Josepha, sob a axila de um defunto, com uma cebola, buscava apontar a origem de uma morte causada por feitiçaria. A intenção não era provocar dano, mas trabalhar dentro da tradição popular, onde mulheres intercedem junto ao mundo espiritual para reparar injustiças e restaurar a ordem que a sociedade tradicional muitas vezes ignora.

O processo judicial contra Josepha revela, de forma inequívoca, o choque entre dois mundos: o da razão institucional, representado pelo delegado, pelo promotor e pelo juiz, e o da cultura popular, carregada de saberes tradicionais, superstição e práticas espirituais. Ao longo do processo, ficou evidente que a acusação não se baseava em danos concretos ou provas objetivas, mas sim em medos, preconceitos e rivalidades internas no meio em que vivia.

Josepha não era dona de um terreiro, mas seu conhecimento, natural e herdado, incomodava aqueles que detinham posições formais de poder espiritual ou social.

Em dias atuais, terreiros espalhados pelo mesmo território que a condenou, ainda vivem sob silêncio. As práticas tradicionais religiosas não são reconhecidas como manifestação cultural, conseguindo, sob muita pressão por meio de órgãos de controle, um ou outro reconhecimento. Porém, não vejo, a exemplo, praças que levam o nome de nenhum pai ou mãe de santo, muito menos de Josepha.

PAUSA PARA REFLEXÃO

Para quem não sabe, a maternidade municipal carrega o nome — ainda que de forma incompleta — de uma yalorixá, a Mãe Esperança Rita. Não foram poucas as vezes em que se discutiu a possibilidade de mudar esse nome. No entanto, ele foi escolhido em reconhecimento à sua trajetória, assim como ocorre com tantas outras mulheres do axé que ajudaram a construir os pilares sociais da nossa cidade e que, muitas vezes, não recebem o devido destaque.

Da mesma forma, o nome “Cosme e Damião”, dado ao Hospital Infantil, também não agrada a alguns representantes do povo, por fazer referência a santos católicos e, ao mesmo tempo, permear o conhecido sincretismo religioso presente em algumas tradições, como a Umbanda.

JOSEPHA SILENCIADA

Voltemos ao caso de Josepha. O que ocorreu com ela também evidencia a dimensão feminina como resistência cultural de Porto Velho. Assim como outras mulheres da época, ela ocupava um espaço de autoridade no mundo popular, mediando saúde, justiça e proteção espiritual em uma sociedade que limitava as opções das mulheres e invisibilizava seus saberes. Assim como outras tantas que possuem seus nomes silenciados e apagados na memória portovelhense.

No artigo de Nilza Menezes, a quem extraio minhas análises sobre Josepha, é citado a distinção entre feiticeira e bruxa, na qual foi confundida nos autos do processo, e revela como é o olhar da sociedade institucional, assim como tratava o conhecimento popular e feminino. Algo suspeito ou perigoso.

Em seu periódico denominado “ UMA FEITICEIRA NO SÉCULO XX” , Josepha, na prática, é a própria personificação descrita por Michelet ¹ – uma mulher movida por necessidades reais, atuando para o bem, de forma natural e sem culpa, mas cujo poder simbólico incomodava e assustava os detentores de poder local.

Historicamente, o registro do processo de Josepha é um documento de valor inestimável. Ele vai além do relato de um crime; ele é um retrato social, cultural e antropológico de Porto Velho no período em que a precariedade do Estado, e a centralidade da morte na vida de pessoas pobres estavam ligadas à margem social dos que detinham poder e dinheiro, além da disputa entre saberes eruditos e populares, e por isso, havia as estratégias de sobrevivência de pessoas degradadas.

É, acima de tudo, um registro das interações sociais, rivalidades, medos e solidariedades que permeiam o que ainda era vila, hoje uma capital.

“Uma feiticeira no século XX” é uma averbação marcada pelo preconceito ainda ferrenhamente entranhado em nossa sociedade, e oferece aos historiadores – e curiosos como eu – um panorama vivo da vida cotidiana, das crenças e das práticas espirituais que moldaram a nossa cidade antes da “modernização e da consolidação das instituições” que nos regem atualmente.

Saber que havia uma mulher chamada Josepha em nossa história significa estudar a nossa Porto Velho não apenas em termos econômicos ou políticos – onde ela representa as pessoas pobres que aqui viveram, mas como um espaço de debate cultural e social, onde a prática de magia, a religião popular e a postura feminina dentro da sociedade revelam uma Porto Velho que ainda hoje mantém ecos dessas marcas sociais e culturais.

Sua história merece ser inserida nos anais da história local, não como curiosidade, mas como um documento que ilumina práticas, valores e resistências de um Porto Velho ainda em construção, refletindo uma população que encontrava, na cultura popular, respostas para o que a sociedade formal não podia oferecer.

Josepha foi quase condenada, pois seus ritos eram discriminados; porém, se analisarmos rezas, práticas de benzimento e a libertação espiritual de outras religiões, também nos deparamos com magias e práticas espirituais que fogem do normal, nos tiram da realidade e nos levam a acreditar no invisível.

Se puder deixar uma análise, seria esta: Não se deve julgar a prática pela voz de quem a manifesta, mas sim pelo seu propósito, que é o bem; portanto, não há condenação cabível. Josepha é a prova de que existe uma atmosfera de espiritualidade e empoderamento popular que resiste, e essa força não pode ser silenciada pela legislação humana.

¹ Nota sobre Jules Michelet
Jules Michelet foi um historiador francês do século XIX, que se tornou fundamental para a denominação “feiticeira” por meio de sua obra de 1862, A Feiticeira. A importância de Michelet reside em sua abordagem inovadora, que reinterpretou a figura da mulher acusada de bruxaria como uma vítima da opressão social e religiosa, e não como uma seguidora de um culto diabólico.

AUTOR: CAMMY LIMA





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