JURÍDICO DESCOMPLICADO
Como o STF redefine a relação entre humanos e animais não-humanos

Decisões do STF nos últimos anos apontam para uma nova abordagem bioética e jurídica na proteção dos animais não-humanos

Por Vinicius Miguel - segunda-feira, 17/03/2025 - 10h57

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No silêncio dos acórdãos e entre as linhas de decisões judiciais, o Supremo Tribunal Federal tem protagonizado uma revolução conceitual que poucos percebem: a gradual reconstrução do status jurídico dos animais não-humanos no ordenamento brasileiro.

Para mais além de disputas dogmáticas, o que está em jogo nas decisões da Corte sobre animais é a própria concepção da comunidade moral que fundamenta nossa sociedade.

À luz da bioética e dos princípios de sustentabilidade, analisamos no presente texto como o STF tem definido os contornos de nossa relação com os demais seres sencientes que compartilham o planeta conosco.

Da Instrumentalidade à Senciência (2016-2020)

A ADI 4.983, julgada inicialmente em 2016 mas com desdobramentos até 2020, representou um divisor de águas na jurisprudência constitucional sobre animais.

Ao declarar inconstitucional a lei cearense que regulamentava a vaquejada, o STF sinalizou que a proteção constitucional dos animais transcende o antropocentrismo tradicional.

O princípio bioético da não-maleficência – primum non nocere – emergiu como parâmetro fundamental: práticas culturais que causam sofrimento deliberado e sistemático a seres sencientes não podem prevalecer simplesmente por seu valor cultural para humanos.

Esta decisão desafiou o paradigma de instrumentalidade animal que permeia a tradição jurídica.

A reação legislativa veio na forma da EC 96/2017, tentativa explícita de restabelecer a primazia absoluta dos interesses humanos.

Nos anos subsequentes, o STF demonstrou que não aceitaria uma reversão completa do novo paradigma bioético inaugurado, interpretando restritivamente a emenda.

Como destacou o Ministro Alexandre de Moraes em um de seus votos: “A introdução da EC 96/2017 no ordenamento jurídico não elimina o núcleo essencial da proteção animal, que integra o conceito constitucionalmente adequado de meio ambiente ecologicamente equilibrado.”

Sustentabilidade Interespécies: Religião, Economia e Proteção Animal (2020-2021)

O RE 1.030.732, julgado em 2020, abordou o delicado equilíbrio entre liberdade religiosa e proteção animal no contexto de rituais de matriz africana (e outras).

Ao estabelecer que o abate ritual é protegido desde que realizado sem crueldade desnecessária, o STF aplicou o princípio bioético da proporcionalidade, reconhecendo a necessidade de maximizar o respeito simultaneamente a diferentes valores morais.

Diferentemente da abordagem de “soma zero” que tradicionalmente caracterizou conflitos envolvendo animais, o tribunal adotou uma perspectiva de sustentabilidade interespécies: é possível conciliar práticas humanas com bem-estar animal quando há esforço consciente para minimizar o sofrimento evitável.

Esta abordagem ficou ainda mais evidente na ADPF 640 (2021), que estabeleceu condições para a exportação de animais vivos.

Sem proibir totalmente a atividade econômica, o tribunal reconheceu que a sustentabilidade real exige limites éticos à exploração animal.

Como afirmou o Ministro Edson Fachin: “O desenvolvimento econômico apenas se qualifica como sustentável quando preserva, ao máximo possível, o bem-estar de todos os seres vivos afetados pela atividade humana.”

Aqui, os parâmetros bioéticos de justiça e não-maleficência foram combinados com o princípio da sustentabilidade forte, que reconhece limites éticos absolutos à exploração econômica dos sistemas vivos.

Autonomia Federativa e Princípio da Precaução na Proteção Animal (2022-2023)

A ADI 6.139 (2022), que reconheceu a constitucionalidade da lei paranaense proibindo testes de cosméticos em animais, revelou outra faceta fundamental da nova jurisprudência: a aplicação do princípio da precaução bioética à experimentação animal.

Ao validar a iniciativa estadual, o STF sinalizou que, na dúvida sobre a dispensabilidade do sofrimento animal, deve-se optar pela maior proteção.

Esta decisão incorporou o que os bioeticistas denominam “presunção em favor da vida sentiente” – na ausência de certeza científica sobre a necessidade do sofrimento, presume-se a favor da proteção.

A dimensão federativa da decisão também merece destaque sob a ótica da sustentabilidade.

Ao reconhecer a legitimidade dos estados para avançar na proteção animal, o tribunal favoreceu o princípio da subsidiariedade, essencial para uma governança ambiental adaptativa e responsiva às particularidades locais.

Esta tendência se consolidou na ADI 5.995 (2023), quando o STF analisou o Código de Bem-Estar Animal de São Paulo.

A decisão reforçou que a proteção ao meio ambiente – incluindo a fauna – é matéria de competência concorrente, permitindo modelos de governança experimentais e adaptativos, fundamentais para a sustentabilidade em sistemas socioecológicos complexos.

O Princípio da Beneficência Ativa e o Dever de Cuidado (2024-2025)

As decisões mais recentes do STF denotam um avanço conceitual ainda mais significativo: a transição de uma proteção meramente negativa (não causar sofrimento) para uma concepção positiva de dever de cuidado.

Na ADI 5.772 (2024), ao analisar a regulamentação de rodeios no Distrito Federal, o tribunal não se limitou a proibir práticas evidentemente cruéis, mas determinou a adoção de medidas positivas de bem-estar animal, como disponibilização de sombra, água e atendimento veterinário imediato.

Esta abordagem reflete o princípio bioético da beneficência – não basta não causar dano, é preciso promover ativamente o bem-estar – e ressignifica a responsabilidade humana perante os animais sob sua guarda.

A evolução culmina na recente liminar na ADPF 1.030 (2025), que determinou a castração obrigatória de cães e gatos antes de sua comercialização.

Esta decisão ultrapassa a noção tradicional de crueldade direta para abordar o problema sob a perspectiva da responsabilidade prospectiva e da justiça intergeracional – elementos centrais da sustentabilidade.

A Emergência de uma Bioética Constitucional e Afetiva Multiespécies

A trajetória jurisprudencial do STF nos últimos cinco anos revela a gradual construção de uma verdadeira bioética constitucional multiespécies.

Quatro princípios fundamentais emergem desta evolução:

Princípio da senciência como critério moral relevante. O reconhecimento de que a capacidade de sentir dor e prazer é critério suficiente para conferir status moral e proteção jurídica aos animais.

Princípio da sustentabilidade forte interespécies. A compreensão de que a verdadeira sustentabilidade exige a consideração do bem-estar de todos os seres sencientes, não apenas dos humanos.

Princípio da responsabilidade prospectiva. O reconhecimento de que temos deveres não apenas para com os animais presentes, mas também para com as gerações futuras de animais que serão afetadas por nossas decisões.

Princípio da governança adaptativa. A legitimação de múltiplos níveis de decisão e proteção, permitindo experimentação e inovação na tutela jurídica dos animais.

Estamos Reconhecendo Direitos Fundamentais aos Animais?

A evolução jurisprudencial do STF nos convida a uma outra reflexão: estaríamos testemunhando o nascimento de uma doutrina constitucional de direitos fundamentais dos animais não-humanos?

A análise das decisões sugere uma trajetória que, embora não explicite este reconhecimento, pavimenta o caminho para ele.

Da proteção contra crueldade evidente, passamos ao reconhecimento da senciência como critério moral relevante, e deste à afirmação de responsabilidades positivas dos humanos perante os demais seres sencientes.

Os princípios bioéticos de não-maleficência, beneficência, autonomia e justiça – tradicionalmente aplicados apenas a humanos – gradualmente se expandem para incluir os animais não-humanos.

A sustentabilidade forte, que reconhece limites éticos absolutos à exploração da natureza, emerge como parâmetro para avaliar práticas que afetam o bem-estar animal.

Se o fundamento dos direitos fundamentais humanos é a dignidade inerente a todos os membros da família humana, não seria o momento de questionar se alguma forma de dignidade também deve ser reconhecida aos demais seres sencientes?

Vinicius Valentin Raduan Miguel é advogado e professor da Universidade Federal de Rondônia. Encontra-se licenciado ocupando o cargo de Secretário Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Porto Velho

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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