O legado complexo de Hans Asperger sob a lente da História e da ética médica
A obra Hans Asperger, Autismo y Tercer Reich: En busca de la verdad histórica, de Herwig Czech, oferece uma análise sobre a trajetória profissional de Hans Asperger, suas contribuições científicas e seu envolvimento com as políticas eugenistas do regime nazista.
O médico “emprestou” o nome para o que era descrito, até 2013, como a Síndrome de Asperger.
Partindo de uma revisão documental, Czech questiona a narrativa tradicional que apresentava Asperger como um humanista e defensor de crianças autistas.
O autor expõe uma realidade complexa, em que a ciência, a ética e a política se entrelaçam em um período marcado pela violência estatal sistemática e em escalas industriais.
O texto, portanto, explora os principais pontos levantados por Czech, com foco na relação entre o trabalho de Asperger, as políticas nazistas de exclusão e os dilemas éticos enfrentados por médicos em contextos autoritários.
O Contexto Histórico: A Áustria Sob o Terceiro Reich
A anexação da Áustria ao Terceiro Reich em 1938 (Anschluss) marcou uma fase de integração e submissão às políticas nazistas, com consequências em todas as áreas sociais e políticas para a sociedade austríaca.
Entre os pilares ideológicos do regime estava a “higiene racial”, um conceito que orientava políticas de eugenia e culminava na eliminação sistemática de indivíduos considerados “indesejáveis”.
Programas como o Aktion T4 foram criados para implementar a eutanásia de pessoas com deficiências físicas e mentais, visando a “purificação” da população e a otimização dos recursos do Estado.
Em tal contexto institucional, os sistemas de saúde e educação foram instrumentalizados para identificar, categorizar e assassinar sistematicamente pessoas que não atendiam aos critérios de “utilidade social” definidos pelo regime.
Os médicos desempenharam um papel considerável nessas políticas, sendo frequentemente responsáveis por decisões que determinavam a vida ou a morte de pacientes.
A ciência e a medicina, sob o Terceiro Reich foram transformadas em ferramentas de exclusão e violência.
É nesse ambiente clínico e geopolítico que Hans Asperger conduziu sua pesquisa e atuação médica.
Hans Asperger: Entre a Ciência e o Contexto Político
Hans Asperger, pediatra e psiquiatra austríaco, é sempre mencionado por suas contribuições iniciais ao estudo do que hoje é conhecido como espectro autista.
Sua principal publicação, de 1944, descreveu crianças com habilidades cognitivas preservadas, mas com dificuldades significativas na interação social e comunicação. Essas características foram posteriormente denominadas como “Síndrome de Asperger”.
Czech apresenta evidências de que Asperger participou de comissões médicas que avaliavam crianças com deficiências e determinavam seu destino. Embora Asperger não tenha sido formalmente afiliado ao Partido Nazista, sua colaboração com as estruturas institucionais do regime é inegável.
Documentos analisados pelo autor mostram que Asperger, em alguns casos, redigiu relatórios médicos que contribuíram para o envio de crianças a instituições como a clínica Am Spiegelgrund, onde foram assassinadas como parte do programa de eutanásia.
A Clínica Am Spiegelgrund e o Programa de Eutanásia Infantil
A clínica Am Spiegelgrund, localizada em Viena, tornou-se um dos principais centros de implementação do programa de eutanásia infantil do Terceiro Reich.
Crianças enviadas a essa instituição eram submetidas a experimentos médicos, negligência deliberada ou assassinatos diretos por injeções letais e outros métodos cruéis.
Czech documenta casos específicos de crianças diagnosticadas por Hans Asperger que foram encaminhadas para Am Spiegelgrund, destacando o papel indireto do médico nesse processo.
Embora Asperger não tenha atuado diretamente na execução das políticas de eutanásia, sua participação nas avaliações médicas contribuiu para a perpetuação de um sistema que legitimava a exclusão e o extermínio de crianças vulneráveis.
O Conceito de “Autismo Produtivo” e a Eugenia Nazista
Uma das concepções de Hans Asperger foi a identificação de crianças com habilidades excepcionais dentro do espectro autista, que ele denominou “autistas de alto funcionamento”.
Em seus relatórios, Asperger descreveu algumas dessas crianças como “produtivas” ou “valiosas” para a sociedade, enquanto outras (a maioria) eram classificadas como incapazes de se adaptar ou contribuir.
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Herwig Czech argumenta que essa distinção, embora tenha protegido algumas crianças, também reforçava a lógica eugenista do regime nazista, que valorizava os indivíduos com base em sua utilidade econômica e social.
Esse aspecto do trabalho de Asperger é emblemático do dilema ético enfrentado por médicos sob regimes autoritários. A tentativa de proteger certos pacientes pode, paradoxalmente, legitimar sistemas de opressão que perpetuam a exclusão e o extermínio de outros.
Czech explora essa ambivalência com profundidade.
A Reputação de Hans Asperger no Pós-Guerra
Após a Segunda Guerra Mundial, Hans Asperger conseguiu reconstruir sua carreira e consolidar sua reputação como um pioneiro no estudo do autismo.
No entanto, Herwig Czech questiona como Asperger conseguiu evitar a responsabilização por suas atividades durante o Terceiro Reich.
O autor sugere que o silêncio em torno de seu envolvimento com as políticas nazistas foi deliberado, permitindo que Asperger fosse celebrado como um humanista e defensor das crianças autistas.
Essa construção e reabilitação da imagem de Asperger foi sustentada por décadas, até que pesquisas mais recentes, como a de Czech, começaram a elucidar aspectos menos conhecidos de sua trajetória.
O autor enfatiza a importância de confrontar essas narrativas históricas para obter uma compreensão mais completa e honesta da relação entre ciência, ética e política.
A Instrumentalização da Ciência em Regimes Autoritários
Czech destaca que a colaboração de Asperger com as políticas nazistas não deve ser entendida como um caso isolado, mas como parte de um fenômeno mais amplo em que a ciência foi usada para legitimar práticas desumanas. Essa análise convida à reflexão sobre o papel da ética na pesquisa científica e na prática médica, especialmente em contextos de repressão política.
Reflexões Éticas e Históricas
A obra de Herwig Czech não demoniza Hans Asperger.
Ao meu ver, o autor reconhece contribuições científicas de Asperger, mas insiste na necessidade de examinar essas realizações à luz de seu contexto histórico e político.
Essa abordagem é essencial para evitar a idealização, beatificação e romantização de figuras históricas e para compreender as complexas interações entre ciência, ética e poder.
Além disso, o livro destaca a importância de revisitar narrativas históricas e confrontar os mitos que cercam figuras como Hans Asperger.
Conclusão
Hans Asperger, Autismo y Tercer Reich é uma obra essencial para o entendimento das interseções entre ciência, ética e política.
Herwig Czech apresenta uma investigação rigorosa e abrangente que desafia narrativas consolidadas e ilumina as complexidades da trajetória de Hans Asperger.
O livro não apenas contribui para o campo da história e da medicina. Serve como um poderoso lembrete da necessidade de uma prática científica ética e consciente em todas as circunstâncias.
Ao confrontar o passado, ensaiamos evitar a repetição de erros históricos.
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Referências
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AUTOR: VINICIUS MIGUEL