Hans Asperger, autismo e o Terceiro Reich: um exame histórico e ético

O legado complexo de Hans Asperger sob a lente da História e da ética médica

Por Vinicius Miguel - sábado, 07/12/2024 - 11h12

A obra Hans Asperger, Autismo y Tercer Reich: En busca de la verdad histórica, de Herwig Czech, oferece uma análise sobre a trajetória profissional de Hans Asperger, suas contribuições científicas e seu envolvimento com as políticas eugenistas do regime nazista.

O médico “emprestou” o nome para o que era descrito, até 2013, como a Síndrome de Asperger.

Partindo de uma revisão documental, Czech questiona a narrativa tradicional que apresentava Asperger como um humanista e defensor de crianças autistas. 

O autor expõe uma realidade complexa, em que a ciência, a ética e a política se entrelaçam em um período marcado pela violência estatal sistemática e em escalas industriais.

O texto, portanto, explora os principais pontos levantados por Czech, com foco na relação entre o trabalho de Asperger, as políticas nazistas de exclusão e os dilemas éticos enfrentados por médicos em contextos autoritários.


O Contexto Histórico: A Áustria Sob o Terceiro Reich

A anexação da Áustria ao Terceiro Reich em 1938 (Anschluss) marcou uma fase de integração e submissão às políticas nazistas, com consequências em todas as áreas sociais e políticas para a sociedade austríaca. 

Entre os pilares ideológicos do regime estava a “higiene racial”, um conceito que orientava políticas de eugenia e culminava na eliminação sistemática de indivíduos considerados “indesejáveis”.

Programas como o Aktion T4 foram criados para implementar a eutanásia de pessoas com deficiências físicas e mentais, visando a “purificação” da população e a otimização dos recursos do Estado. 

Em tal contexto institucional, os sistemas de saúde e educação foram instrumentalizados para identificar, categorizar e assassinar sistematicamente pessoas que não atendiam aos critérios de “utilidade social” definidos pelo regime.

Os médicos desempenharam um papel considerável nessas políticas, sendo frequentemente responsáveis por decisões que determinavam a vida ou a morte de pacientes. 

A ciência e a medicina, sob o Terceiro Reich foram transformadas em ferramentas de exclusão e violência. 

É nesse ambiente clínico e geopolítico que Hans Asperger conduziu sua pesquisa e atuação médica.


Hans Asperger: Entre a Ciência e o Contexto Político

Hans Asperger, pediatra e psiquiatra austríaco, é sempre mencionado por suas contribuições iniciais ao estudo do que hoje é conhecido como espectro autista. 

Sua principal publicação, de 1944, descreveu crianças com habilidades cognitivas preservadas, mas com dificuldades significativas na interação social e comunicação. Essas características foram posteriormente denominadas como “Síndrome de Asperger”.

Czech apresenta evidências de que Asperger participou de comissões médicas que avaliavam crianças com deficiências e determinavam seu destino. Embora Asperger não tenha sido formalmente afiliado ao Partido Nazista, sua colaboração com as estruturas institucionais do regime é inegável. 

Documentos analisados pelo autor mostram que Asperger, em alguns casos, redigiu relatórios médicos que contribuíram para o envio de crianças a instituições como a clínica Am Spiegelgrund, onde foram assassinadas como parte do programa de eutanásia.


A Clínica Am Spiegelgrund e o Programa de Eutanásia Infantil

A clínica Am Spiegelgrund, localizada em Viena, tornou-se um dos principais centros de implementação do programa de eutanásia infantil do Terceiro Reich. 

Crianças enviadas a essa instituição eram submetidas a experimentos médicos, negligência deliberada ou assassinatos diretos por injeções letais e outros métodos cruéis. 

Czech documenta casos específicos de crianças diagnosticadas por Hans Asperger que foram encaminhadas para Am Spiegelgrund, destacando o papel indireto do médico nesse processo.

Embora Asperger não tenha atuado diretamente na execução das políticas de eutanásia, sua participação nas avaliações médicas contribuiu para a perpetuação de um sistema que legitimava a exclusão e o extermínio de crianças vulneráveis. 


O Conceito de “Autismo Produtivo” e a Eugenia Nazista

Uma das concepções de Hans Asperger foi a identificação de crianças com habilidades excepcionais dentro do espectro autista, que ele denominou “autistas de alto funcionamento”. 

Em seus relatórios, Asperger descreveu algumas dessas crianças como “produtivas” ou “valiosas” para a sociedade, enquanto outras (a maioria) eram classificadas como incapazes de se adaptar ou contribuir. 

Herwig Czech argumenta que essa distinção, embora tenha protegido algumas crianças, também reforçava a lógica eugenista do regime nazista, que valorizava os indivíduos com base em sua utilidade econômica e social.

Esse aspecto do trabalho de Asperger é emblemático do dilema ético enfrentado por médicos sob regimes autoritários. A tentativa de proteger certos pacientes pode, paradoxalmente, legitimar sistemas de opressão que perpetuam a exclusão e o extermínio de outros. 

Czech explora essa ambivalência com profundidade.


A Reputação de Hans Asperger no Pós-Guerra

Após a Segunda Guerra Mundial, Hans Asperger conseguiu reconstruir sua carreira e consolidar sua reputação como um pioneiro no estudo do autismo. 

No entanto, Herwig Czech questiona como Asperger conseguiu evitar a responsabilização por suas atividades durante o Terceiro Reich. 

O autor sugere que o silêncio em torno de seu envolvimento com as políticas nazistas foi deliberado, permitindo que Asperger fosse celebrado como um humanista e defensor das crianças autistas.

Essa construção e reabilitação da imagem de Asperger foi sustentada por décadas, até que pesquisas mais recentes, como a de Czech, começaram a elucidar aspectos menos conhecidos de sua trajetória. 

O autor enfatiza a importância de confrontar essas narrativas históricas para obter uma compreensão mais completa e honesta da relação entre ciência, ética e política.


A Instrumentalização da Ciência em Regimes Autoritários


Czech destaca que a colaboração de Asperger com as políticas nazistas não deve ser entendida como um caso isolado, mas como parte de um fenômeno mais amplo em que a ciência foi usada para legitimar práticas desumanas. Essa análise convida à reflexão sobre o papel da ética na pesquisa científica e na prática médica, especialmente em contextos de repressão política.


Reflexões Éticas e Históricas

A obra de Herwig Czech não demoniza Hans Asperger.

Ao meu ver, o autor reconhece contribuições científicas de Asperger, mas insiste na necessidade de examinar essas realizações à luz de seu contexto histórico e político.

 Essa abordagem é essencial para evitar a idealização, beatificação e romantização de figuras históricas e para compreender as complexas interações entre ciência, ética e poder.

Além disso, o livro destaca a importância de revisitar narrativas históricas e confrontar os mitos que cercam figuras como Hans Asperger.

Conclusão

Hans Asperger, Autismo y Tercer Reich é uma obra essencial para o entendimento das interseções entre ciência, ética e política. 

Herwig Czech apresenta uma investigação rigorosa e abrangente que desafia narrativas consolidadas e ilumina as complexidades da trajetória de Hans Asperger. 

O livro não apenas contribui para o campo da história e da medicina. Serve como um poderoso lembrete da necessidade de uma prática científica ética e consciente em todas as circunstâncias. 

Ao confrontar o passado, ensaiamos evitar a repetição de erros históricos.
____
Referências

BARON-COHEN, S.; KLIN, A.; SILBERMAN, S.; BUXBAUM, J. Did Hans Asperger actively assist the Nazi euthanasia program? Molecular Autism, v. 9, 2018. Disponível em: https://molecularautism.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13229-018-0209-5. Acesso em: 7 dez. 2024.

BOVEN, F. Hans Asperger en de nazi-ideologie. Wetenschappelijk Tijdschrift Autisme, 2021. Disponível em: https://wta-tijdschrift.nl/artikelen/hans-asperger-en-de-naziideologie/. Acesso em: 7 dez. 2024.

CZECH, H. Hans Asperger, National Socialism, and “race hygiene” in Nazi-era Vienna. Molecular Autism, v. 9, 2018. Disponível em: https://molecularautism.biomedcentral.com/articles/10.1186/s13229-018-0208-6. Acesso em: 7 dez. 2024.

SHEFFER, E. Asperger’s Children: The Origins of Autism in Nazi Vienna. Affilia, v. 35, p. 438-439, 2018. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0886109919851140. Acesso em: 7 dez. 2024.

WADMAN, M. Asperger’s chilling complicity. Science, v. 360, p. 1192-1193, 2018. Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/science.aat9801. Acesso em: 7 dez. 2024.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





COMENTÁRIOS: