JURÍDICO DESCOMPLICADO
Literatura e Direito: Bioética e Direitos dos Animais em “A Ilha do Dr. Moreau”

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Análise literária, bioética e jurídica da obra de H.G. Wells revela os dilemas morais da ciência e a fragilidade da fronteira entre o humano e o animal

Por Vinicius Miguel - quinta-feira, 17/04/2025 - 18h33

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Por Vinicius Valentin Raduan Miguel

Introdução

“A Ilha do Dr. Moreau” (The Island of Dr. Moreau), romance publicado em 1896 pelo escritor britânico H.G. Wells, apresenta-se como uma obra visionária que, mais de um século após sua publicação, continua a provocar reflexões fundamentais sobre os limites éticos da ciência, os direitos dos animais, e a própria definição de humanidade. A narrativa acompanha Edward Prendick, um náufrago que é resgatado e levado a uma ilha remota onde o Dr. Moreau, um cientista exilado, conduz experimentos grotescos de vivissecção, transformando animais em criaturas híbridas com características humanas.

Esta análise pretende examinar a obra sob o prisma bioético e jurídico contemporâneo, contextualizando-a historicamente e destacando como Wells, através de uma narrativa aparentemente fantástica, antecipou debates cruciais que apenas décadas depois ganhariam corpo no âmbito acadêmico e jurídico.

Contexto Histórico e Sociológico

H.G. Wells e a Era Vitoriana Tardia

Herbert George Wells (1866-1946) foi um dos pioneiros da literatura de ficção científica, utilizando o gênero como veículo para críticas sociais e reflexões sobre o impacto do desenvolvimento científico e tecnológico na sociedade. Nascido em uma família da classe trabalhadora inglesa, Wells conseguiu ascender socialmente através da educação, tendo estudado biologia sob a tutela de Thomas Henry Huxley, conhecido como “o buldogue de Darwin” por sua ferrenha defesa da teoria da evolução.

“A Ilha do Dr. Moreau” foi publicada em um período de profundas transformações sociais, científicas e filosóficas. A era vitoriana tardia (final do século XIX) caracterizava-se por uma confiança inabalável no progresso científico e no poder transformador da razão humana. O darwinismo havia revolucionado a compreensão sobre as origens e a natureza do homem, deslocando-o de sua posição privilegiada como criação divina para inseri-lo no continuum evolutivo das espécies.

Simultaneamente, a revolução industrial havia transformado radicalmente o tecido social britânico, criando novas formas de exploração e desigualdade. O imperialismo vitoriano, justificado pelo conceito de “fardo do homem branco”, legitimava a dominação colonial sob o pretexto de levar a “civilização” aos povos considerados “selvagens” ou “inferiores”.

É neste contexto que Wells elabora sua narrativa sobre um cientista que, a exemplo do colonizador europeu, busca impor sua visão de “progresso” a seres que considera inferiores, moldando-os à sua imagem e semelhança.

Darwinismo Social e Eugenia

O final do século XIX também testemunhou a ascensão do darwinismo social e das primeiras teorias eugênicas, que aplicavam de forma distorcida os princípios da seleção natural às sociedades humanas. Francis Galton, primo de Darwin, havia cunhado o termo “eugenia” em 1883, defendendo a melhoria genética da raça humana através de reprodução seletiva. Essas ideias ganhariam força nas décadas seguintes, culminando em políticas eugênicas em diversos países.

Em “A Ilha do Dr. Moreau”, Wells parece antecipar os perigos dessas teorias ao retratar um cientista que busca “aperfeiçoar” outras espécies através de manipulação biológica forçada. A obra pode ser lida como um alerta sobre os perigos de uma ciência desvinculada de princípios éticos, movida apenas pela ambição de controle sobre a natureza.

A Vivissecção na Era Vitoriana

Um elemento central da narrativa de Wells é a prática da vivissecção – a dissecação de animais vivos para fins de pesquisa científica. Na Inglaterra vitoriana, essa prática era alvo de crescentes críticas por parte de organizações defensoras do bem-estar animal, como a Sociedade Nacional Antivivissecção, fundada em 1875. O próprio Wells havia testemunhado demonstrações de vivissecção durante seus estudos de biologia, e a crueldade desses procedimentos claramente o impactou.

A primeira legislação britânica para regular a experimentação animal, o Cruelty to Animals Act, foi aprovada em 1876, apenas duas décadas antes da publicação do romance. No entanto, essa lei tinha limitações significativas e não impedia o sofrimento animal em nome do avanço científico.

Quando o Dr. Moreau explica a Prendick suas motivações, revela-se o caráter desumano de uma ciência que ignora o sofrimento que causa:

“Pain, Moreau said, was a matter of nerves, not all that significant. Most of the operating he did was as painless as repairing a machine… it was really no worse than the suffering that went with any birth. […] He told me that these creatures you have seen are animals carven and wrought into new shapes. To that, to the study of the plasticity of living forms, my life has been devoted.” (WELLS, 1896, p. 72).

[Tradução livre: “A dor, Moreau disse, era uma questão de nervos, nada tão significativo. A maior parte das operações que ele realizava era tão indolor quanto reparar uma máquina… não era realmente pior que o sofrimento que acompanha qualquer nascimento. […] Ele me disse que essas criaturas que você viu são animais esculpidos e moldados em novas formas. A isso, ao estudo da plasticidade das formas vivas, minha vida tem sido dedicada.”]

Esta passagem revela a objetificação completa do animal, reduzido a mero material experimental, e a frustração do cientista não com o sofrimento causado, mas com o fato de que esse sofrimento interfere em seus experimentos.

Este trecho revela a objetificação completa do animal, reduzido a mero material experimental, e a frustração do cientista não com o sofrimento causado, mas com o fato de que esse sofrimento interfere em seus experimentos.

A Obra e sua Narrativa

A narrativa de “A Ilha do Dr. Moreau” é contada em primeira pessoa por Edward Prendick, um náufrago que, após ser resgatado por um navio que transportava animais para uma ilha remota, acaba por descobrir os horrores das experiências conduzidas pelo Dr. Moreau.

Na ilha, Prendick testemunha criaturas meio-humanas, meio-animais, resultados dos experimentos de Moreau, que através de dolorosos procedimentos cirúrgicos e manipulação biológica, tenta transformar animais em seres humanos. Essas criaturas são mantidas sob controle através de uma série de regras, a “Lei”, que proíbe comportamentos animalescos e exige a adoração a Moreau como uma divindade.

A narrativa atinge seu clímax quando Moreau é morto por uma de suas criações, o Homem-Puma, e a ordem na ilha colapsa. Prendick sobrevive entre as criaturas por meses, testemunhando sua gradual regressão aos instintos animais originais, até finalmente conseguir escapar. De volta à civilização, ele se descobre incapaz de ver seus semelhantes sem enxergar neles os traços animalescos que agora reconhece como parte intrínseca da natureza humana.

Análise Bioética da Obra

Autonomia e Consentimento

Um dos princípios fundamentais da bioética contemporânea é o respeito à autonomia do sujeito e a necessidade de consentimento livre e esclarecido para intervenções médicas ou experimentais. Na ilha de Moreau, esse princípio é flagrantemente violado: os animais são submetidos a procedimentos dolorosos e irreversíveis sem qualquer possibilidade de consentimento.

A própria criação da “Lei” imposta às criaturas representa uma violação de sua autonomia existencial, forçando-as a negar sua natureza original em favor de um comportamento artificialmente imposto:

“Not to go on all-fours; that is the Law. Are we not Men? […] Not to suck up Drink; that is the Law. Are we not Men? […] Not to eat Fish or Flesh; that is the Law. Are we not Men?” (WELLS, 1896, p. 58).

[Tradução livre: “Não andar de quatro; essa é a Lei. Não somos Homens? […] Não beber com o focinho; essa é a Lei. Não somos Homens? […] Não comer Carne nem Peixe; essa é a Lei. Não somos Homens?”]

Esta passagem representa uma imposição de valores e comportamentos a seres que não têm capacidade de compreendê-los plenamente, ecoando práticas colonialistas e missionárias da era vitoriana, onde culturas “primitivas” eram forçadas a adotar costumes europeus sob o pretexto de “civilização”.

Essa imposição de valores e comportamentos a seres que não têm capacidade de compreendê-los plenamente ecoa práticas colonialistas e missionárias da era vitoriana, onde culturas “primitivas” eram forçadas a adotar costumes europeus sob o pretexto de “civilização”.

Não-maleficência e Experimentação Animal

O princípio bioético da não-maleficência (“primum non nocere” – primeiro, não causar dano) é sistematicamente violado por Moreau, que submete suas cobaias a sofrimentos atrozes em nome do avanço científico. A descrição dos procedimentos é explicitamente cruel:

“The crying sounded even louder out of doors. It was as if all the pain in the world had found a voice.” (WELLS, 1896, p. 32).

[Tradução livre: “O choro soava ainda mais alto ao ar livre. Era como se toda a dor do mundo tivesse encontrado uma voz.”]

Esta passagem ilustra não apenas a crueldade física dos procedimentos, mas também a deformação existencial imposta aos animais – transformados em algo que não são por natureza, presos em corpos e mentes modificados contra sua vontade.

Esta passagem ilustra não apenas a crueldade física dos procedimentos, mas também a deformação existencial imposta aos animais – transformados em algo que não são por natureza, presos em corpos e mentes modificados contra sua vontade.

A obra de Wells antecipa em quase um século debates contemporâneos sobre os limites éticos da experimentação animal e a necessidade de protocolos que minimizem o sofrimento. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO em 1978, estabelece que “experimentos em animais que impliquem sofrimento físico ou psicológico violam os direitos dos animais” (Art. 8º) – princípio claramente ausente na ilha de Moreau.

Biotecnologia e Limites Éticos

Embora escrito em uma época pré-genômica, “A Ilha do Dr. Moreau” levanta questões surpreendentemente atuais sobre os limites éticos da biotecnologia e da manipulação genética. Quando Moreau explica a Prendick seu método de modificação dos animais, descreve um processo que, em termos conceituais, não está tão distante das modernas técnicas de engenharia genética:

“Estes seres que você viu são animais esculpidos e moldados em novas formas. Para isto, é preciso conhecimento de anatomia comparada, e eu tenho esse conhecimento. […] Esses estudos de anatomia comparada ensinaram-me enormes possibilidades, de que nunca se falou. Acima de tudo, os extremos da plasticidade da forma animal se revelaram para mim.”

A plasticidade da “forma animal” que fascina Moreau encontra paralelo moderno na maleabilidade do genoma revelada pelas técnicas contemporâneas de edição genética como CRISPR-Cas9. A possibilidade de criar quimeras animal-humano para fins de pesquisa ou mesmo para produção de órgãos para transplante levanta hoje dilemas bioéticos semelhantes aos imaginados por Wells.

Em 2017, o Nuffield Council on Bioethics do Reino Unido publicou um relatório sobre os aspectos éticos da criação de “animais humanizados” na pesquisa, destacando questões de bem-estar animal e potenciais consequências imprevistas – temas explorados ficcionalmente por Wells mais de um século antes.

Análise Jurídica

Direitos dos Animais na Perspectiva Contemporânea

O tratamento dado aos animais na ilha de Moreau choca a sensibilidade contemporânea e violaria praticamente toda legislação moderna de proteção animal. A vivissecção sem anestesia adequada, a modificação corporal dolorosa e as condições de confinamento descritas constituiriam crimes de crueldade animal em qualquer jurisdição desenvolvida atual.

No Brasil, por exemplo, a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) tipifica como crime “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” (Art. 32), com penas aumentadas quando resulta em morte do animal. A prática experimental de Moreau violaria flagrantemente essas disposições.

No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais postula que “nenhum animal deve ser submetido a maus tratos e a atos cruéis” (Art. 3º) e que “todo ato que implique a morte desnecessária de um animal é um biocídio, ou seja, um crime contra a vida” (Art. 11).

A evolução jurídica na proteção animal desde a época vitoriana é notável. Se na época de Wells os animais eram largamente considerados meros objetos à disposição dos humanos, hoje diversas jurisdições reconhecem aos animais o status de seres sencientes, com interesses próprios juridicamente protegidos. Por exemplo, o Tratado de Lisboa (2009) reconhece formalmente os animais como “seres sensíveis”, e o Código Civil francês foi reformado em 2015 para reconhecer os animais como “seres vivos dotados de sensibilidade”.

Regulação da Pesquisa Científica

A ilha de Moreau representa um espaço sem regulação, onde o cientista pode atuar livre de supervisão ética ou legal – um cenário que a comunidade científica internacional tem se esforçado para evitar através de comitês de ética, protocolos de pesquisa e marcos regulatórios.

Atualmente, a pesquisa envolvendo animais é regulada por princípios como os “3Rs” (Replacement, Reduction, Refinement – Substituição, Redução, Refinamento), que visam minimizar o uso e o sofrimento de animais em experimentos. No Brasil, a Lei Arouca (Lei 11.794/2008) estabelece procedimentos para o uso científico de animais e cria o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA).

A experimentação em humanos, por sua vez, é regulada por instrumentos como a Declaração de Helsinque e, no Brasil, pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que estabelece diretrizes éticas para pesquisas envolvendo seres humanos. A questão fundamental levantada pela obra de Wells – qual o status ético e jurídico de seres híbridos entre humanos e animais – permanece, contudo, um desafio para os sistemas jurídicos contemporâneos.

Dignidade e Personalidade Jurídica

Uma das questões mais intrigantes levantadas pela obra é o status moral e jurídico das criaturas híbridas criadas por Moreau. Seriam elas animais modificados ou chegaria um ponto em que deveriam ser consideradas pessoas, com direitos correspondentes?

O próprio Moreau reconhece o dilema ao afirmar a Prendick:

“Humanizados, é o que eles são, humanizados. […] Os pobres monstros. Não vou mostrar-lhe ainda. Eles têm, o que se chama suficientemente, uma aparência repulsiva, mas para mim são os estudos mais admiráveis […] Agora são como homens. É uma admirável experiência de vivisseção. Podia fazê-los humanos por completo, se soubesse como…”

Esta passagem revela o estado liminar das criaturas – nem completamente animais, nem completamente humanas – e o dilema ético e jurídico que representam. Na contemporaneidade, com o avanço das tecnologias de manipulação genética e a possibilidade de criação de quimeras, este dilema deixou de ser meramente ficcional.

No direito contemporâneo, a personalidade jurídica – a capacidade de ser sujeito de direitos e deveres – tem sido tradicionalmente reservada aos seres humanos e a entidades legais como corporações. No entanto, há movimentos recentes para o reconhecimento de algum grau de personalidade jurídica a certos animais, especialmente grandes primatas, cetáceos e outros animais com alta capacidade cognitiva.

Em 2008, o Parlamento espanhol aprovou uma resolução concedendo direitos legais limitados a grandes primatas, e em 2015 um tribunal argentino reconheceu um orangotango como “pessoa não-humana” com direito à liberdade. Estas tendências sugerem uma evolução jurídica no sentido de reconhecer que a linha divisória entre humanos e não-humanos pode não ser tão clara quanto tradicionalmente se supunha – exatamente o ponto levantado pela obra de Wells.

A Lei e a Bestialidade: Controle Social e Regressão

Um aspecto fascinante da narrativa de Wells é o estabelecimento da “Lei” como mecanismo de controle social das criaturas híbridas. Essa Lei, recitada como um mantra pelas criaturas, proíbe comportamentos animalescos e exige a adoração a Moreau:

“Não andar de quatro; essa é a Lei. Não somos Homens?
Não sugar a seiva das árvores; essa é a Lei. Não somos Homens?
Não comer Carne nem Peixe; essa é a Lei. Não somos Homens?
Não arranhar a casca das árvores; essa é a Lei. Não somos Homens?
Não caçar outros Homens; essa é a Lei. Não somos Homens?”

Este código de conduta imposto representa uma forma de colonização cultural e identitária, forçando as criaturas a reprimirem sua natureza original. Quando Moreau é morto e a autoridade colapsa, as criaturas gradualmente regridem aos seus instintos animais, ilustrando a fragilidade da civilização imposta por coerção externa.

Este aspecto da narrativa pode ser lido como uma crítica ao projeto colonialista europeu, que impunha códigos culturais e morais estrangeiros a povos subjugados, e também como uma reflexão sobre a tensão freudiana entre civilização e impulsos primordiais – tema que seria explorado por Sigmund Freud em “O Mal-Estar na Civilização” (1930).

Em termos jurídicos contemporâneos, a “Lei” de Moreau representaria uma violação do princípio da legalidade, pois impõe obrigações a seres que não têm capacidade de compreendê-las plenamente ou de consentir com elas. Além disso, a imposição é feita através do medo e da violência, violando princípios fundamentais de dignidade e autonomia.

O Legado da Obra para o Pensamento Bioético e Jurídico

“A Ilha do Dr. Moreau” deixa um legado duradouro para as reflexões bioéticas e jurídicas, antecipando debates que apenas décadas depois ganhariam corpo acadêmico e institucional.

A Questão da Modificação da Natureza Humana

A obra levanta questões fundamentais sobre os limites éticos da intervenção científica na natureza humana e animal. Quando Prendick questiona Moreau sobre as implicações morais de suas experiências, o cientista responde:

“A dor? A dor e o prazer existem somente no espaço de algumas polegadas… Nós conhecemos somente uma pequena porção do possível sofrimento do sistema nervoso, mas… […] Os humanos que vivem numa terra segura, rodeados de cercas, entendem muito pouco sobre a dor. A sensibilidade é tão desigualmente distribuída…”

Esta passagem revela o relativismo moral de Moreau, que desconsidera o sofrimento em nome de um suposto progresso científico. Na era da biotecnologia, questões semelhantes emergem quanto aos limites éticos da modificação genética, clonagem e outras tecnologias que têm o potencial de alterar fundamentalmente o que entendemos por “humano”.

A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, adotada pela UNESCO em 1997, afirma que “práticas contrárias à dignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos, não devem ser permitidas” (Art. 11). Embora focada em humanos, esta declaração estabelece o princípio de que algumas intervenções biotecnológicas, mesmo quando tecnicamente possíveis, podem ser eticamente inaceitáveis – precisamente o dilema explorado por Wells.

A Fronteira entre Humano e Não-humano

Talvez a questão mais profunda levantada pela obra seja a própria definição do que constitui humanidade. Quando Prendick retorna à civilização, passa a ver seus semelhantes com novos olhos:

“But I have even now a sense of incompleteness, as though I once had been part of some other thing […] I see faces, keen and bright; others dull or dangerous; others, unsteady, insincere, — none that have the calm authority of a reasonable soul. I feel as though the animal was surging up through them; that presently the degradation of the Islanders will be played over again on a larger scale.” (WELLS, 1896, p. 131).

[Tradução livre: “Mas ainda agora tenho uma sensação de incompletude, como se eu uma vez tivesse sido parte de alguma outra coisa […] Vejo rostos, afiados e brilhantes; outros, apáticos ou perigosos; outros, instáveis, insinceros — nenhum que tenha a calma autoridade de uma alma racional. Sinto como se o animal estivesse emergindo através deles; que em breve a degradação dos Ilhéus será reproduzida em uma escala maior.”]

Esta percepção de Prendick, de que os humanos “civilizados” não estão tão distantes das criaturas híbridas da ilha, representa um questionamento radical da excepcionalidade humana – a ideia de que existe uma diferença fundamental e intransponível entre humanos e outros animais.

O debate contemporâneo sobre os direitos dos grandes primatas, o reconhecimento da senciência em diversas espécies e as propostas de expansão do círculo moral para incluir outros seres além dos humanos refletem este questionamento. Obras como “Animal Liberation” (1975) de Peter Singer e “The Case for Animal Rights” (1983) de Tom Regan têm argumentado pela consideração moral de interesses não-humanos, ecoando – embora de forma distinta – a dissolução das fronteiras entre humano e animal explorada por Wells.

Em termos jurídicos, a tendência a reconhecer certos animais como sujeitos de direito, ainda que limitados, representa um desafio ao paradigma antropocêntrico tradicional, segundo o qual apenas humanos podem ser titulares de direitos. A Constituição do Equador de 2008, por exemplo, reconhece direitos à própria natureza (Pacha Mama), e a Constituição da Bolívia de 2009 estabelece uma Lei de Direitos da Mãe Terra – desenvolvimentos jurídicos que representam uma mudança paradigmática na concepção tradicional de sujeito de direito.

Conclusão

“A Ilha do Dr. Moreau” permanece surpreendentemente atual, mais de um século após sua publicação. Ao retratar os horrores de uma ciência desprovida de ética, Wells não apenas criticava práticas de sua época, como a vivissecção e o colonialismo, mas também antecipava dilemas bioéticos fundamentais que a humanidade enfrentaria com o avanço da biotecnologia.

As questões levantadas pela obra – os limites éticos da experimentação científica, os direitos dos animais, a fronteira entre humano e não-humano, e a própria definição de humanidade – continuam no centro dos debates bioéticos e jurídicos contemporâneos. À medida que tecnologias como a edição genética, a clonagem e a criação de quimeras se desenvolvem, os dilemas imaginados por Wells deixam o domínio da ficção para se tornarem desafios concretos para os sistemas éticos e jurídicos.

Talvez a lição mais profunda da obra seja a necessidade de uma ciência guiada por princípios éticos, respeitosa da dignidade intrínseca de todos os seres sencientes. Como observou o bioeticista Van Rensselaer Potter, que cunhou o termo “bioética” em 1970, precisamos de uma “ponte para o futuro” – uma sabedoria que nos permita utilizar o conhecimento científico para o bem-estar de todos os seres, não apenas dos humanos.

Na ilha do Dr. Moreau, vemos as consequências de uma ciência divorciada da ética – um cenário que serve como alerta permanente sobre os perigos de permitir que o “possível” tecnológico determine o “permissível” moral. Como sociedade, devemos garantir que nossos marcos éticos e jurídicos evoluam para enfrentar os desafios apresentados pelas novas biotecnologias, assegurando que estas sejam utilizadas para promover, e não violar, os princípios fundamentais de dignidade, autonomia e não-maleficência.

A obra de Wells, portanto, não é apenas um clássico da literatura de ficção científica, mas também um texto seminal para a bioética e o direito – um convite perene à reflexão sobre o que significa ser humano e sobre as responsabilidades morais que acompanham nosso poder crescente de modificar a natureza.

Diante desta obra que nos confronta com o espelho sombrio da crueldade científica, somos forçados a questionar: não seria o próprio Wells, através da figura de Prendick, a nos mostrar que a verdadeira monstruosidade não está nas criaturas híbridas da ilha, mas na capacidade intrinsecamente humana de infligir sofrimento em nome do progresso? Quando olhamos para os “homens-animais” com horror, não estamos, na verdade, contemplando o reflexo mais honesto de nossa própria natureza, apenas sem as camadas de civilização que nos permitem justificar nossas próprias brutalidades?

Referências

ARMSTRONG, Philip. What Animals Mean in the Fiction of Modernity. Londres: Routledge, 2008.

BERNARDES, Claude. Introduction to the Study of Experimental Medicine. Nova York: Dover Publications, 1957.

COETZEE, J. M. A Vida dos Animais. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GALTON, Francis. Inquiries into Human Faculty and Its Development. Londres: Macmillan, 1883.

POTTER, Van Rensselaer. Bioethics: Bridge to the Future. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1971.

REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. Berkeley: University of California Press, 1983.

SHELLEY, Mary. Frankenstein: ou o Prometeu Moderno. São Paulo: Penguin Companhia, 2015.

SINGER, Peter. Animal Liberation: A New Ethics for Our Treatment of Animals. Nova York: Harper Collins, 1975.

STOKER, Bram. Drácula. São Paulo: Penguin Companhia, 2014.

VINT, Sherryl. Animal Alterity: Science Fiction and the Question of the Animal. Liverpool: Liverpool University Press, 2010.

WELLS, H. G. A Ilha do Dr. Moreau. São Paulo: Suma de Letras, 2012.

WELLS, H. G. The Island of Doctor Moreau. Londres: William Heinemann, 1896.

O autor é advogado e professor da Universidade Federal de Rondônia. Encontra-se licenciado ocupando o cargo de Secretário Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Porto Velho

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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