Reformas institucionais recentes no Brasil reduzem o número de partidos com acesso ao sistema político, limitando a diversidade sociológica da representação
Contextualização: A Grande Transformação do Sistema Partidário (2017-2026)
O sistema partidário brasileiro atravessa, desde 2017, uma metamorfose estrutural sem precedentes na história democrática recente, caracterizada por três mecanismos reformadores que operam de forma sinérgica: a extinção das coligações proporcionais (Lei 13.488/2017), a implementação progressiva da cláusula de barreira (Lei 13.655/2018) e a subsequente onda de fusões e federações partidárias (2019-2024).
Este conjunto de transformações, apresentado como modernização técnica necessária à governabilidade, produz como efeito sistêmico uma *concentration drastique* (concentração drástica) do poder político que redefine fundamentalmente os parâmetros da competição democrática nacional.
A cláusula de barreira, que exige desempenho mínimo de 3% dos votos válidos nacionalmente ou eleição de 15 deputados federais distribuídos em pelo menos um terço dos estados, funciona como dispositivo de exclusão que elimina partidos menores do acesso ao fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuita.
Simultaneamente, as fusões estratégicas — exemplificadas pela criação da União Brasil (DEM-PSL), federação PSDB-Cidadania e articulação MDB-Republicanos — consolidam blocos hegemônicos capazes de superar estas barreiras institucionais. O resultado quantitativo é impressionante: enquanto as eleições presidenciais brasileiras registraram uma média de 8,2 candidaturas por pleito entre 1989 e 2022 (variando de 22 candidatos em 1989 a 13 em 2022), as projeções para 2026 indicam uma redução para aproximadamente 5-6 candidaturas presidenciais viáveis, representando uma contração de cerca de 35% no espectro de escolhas eleitorais disponíveis aos cidadãos — um fenômeno que se replica proporcionalmente nos demais cargos do sistema político brasileiro.
I. O Dilema Estrutural do Pluralismo Contemporâneo
A reconfiguração do sistema partidário brasileiro situa-se no epicentro de uma tensão fundamental da teoria democrática contemporânea: o conflito irresolúvel entre pluralismo quantitativo e funcionalidade sistêmica. Esta tensão não representa meramente um ajuste técnico-institucional, mas revela uma contradição profunda entre dois imperativos igualmente legítimos da democracia moderna — a necessidade de governabilidade e a exigência de representatividade integral.
Sob a perspectiva da escola pluralista clássica, desenvolvida por Arthur Bentley em *The Process of Government* (1908) e refinada por Robert Dahl em *Who Governs?* (1961), a legitimidade democrática encontra sua fonte na capacidade institucional de acomodar a multiplicidade de interesses sociais através de canais políticos diversificados. A democracia, nesta concepção, funciona como um *marché politique* (mercado político) onde diferentes grupos competem por influência, sendo a diversidade partidária um requisito funcional para esta mediação.
A concentração partidária promovida pelas reformas recentes opera, portanto, como uma *restriction du marché politique* (restrição do mercado político) que compromete fundamentalmente esta função mediadora. Ao reduzir de aproximadamente 35 partidos com representação efetiva para cinco blocos hegemônicos, o sistema brasileiro abandona o modelo pluralista extensivo em favor de um arranjo oligopolista que, embora mais eficiente administrativamente, pode comprometer sua capacidade de traduzir eleitoralmente a diversidade social.
Esta preocupação adquire particular densidade teórica quando examinada à luz da teoria da representação descritiva de Hanna Pitkin, desenvolvida em *The Concept of Representation* (1967). Pitkin demonstra que a legitimidade representativa não deriva apenas da autorização eleitoral (*standing for*), mas também da semelhança sociológica entre representantes e representados (*descriptive representation*). A redução do número de candidaturas não afeta apenas a dimensão quantitativa da competição eleitoral, mas pode produzir uma distorção qualitativa sistemática na composição da representação política, estabelecendo uma *démocratie sélective* (democracia seletiva) que contradiz os fundamentos normativos do pluralismo.
II. As Dimensões Sociológicas da Exclusão: Mapeando as Perdas Representativas
A análise empírica dos perfis das candidaturas historicamente eliminadas pelas reformas revela padrões sistemáticos de exclusão que transcendem a racionalização institucional para configurar uma verdadeira *régression représentative* (regressão representativa). Os dados do Tribunal Superior Eleitoral para o período 2018-2022 demonstram uma correlação estatisticamente significativa entre tamanho partidário e diversidade sociológica das chapas: partidos menores — aqueles mais vulneráveis à cláusula de barreira — apresentavam sistematicamente maior representação de mulheres (+23%), negros (+31%), indígenas (+67%) e candidatos LGBTQIA+ (+45%) em relação aos grandes partidos.
Esta dinâmica revela um paradoxo perverso: os partidos que funcionavam como *portes d’entrée* (portas de entrada) para segmentos historicamente marginalizados são exatamente aqueles eliminados pela racionalização do sistema. A concentração partidária, longe de ser neutra sociologicamente, produz um efeito de *homogénéisation de la représentation* (homogeneização da representação) que perpetua padrões tradicionais de exclusão através de mecanismos aparentemente técnicos e despolitizados.
Particularmente reveladora é a análise regional desta transformação. O federalismo brasileiro pressupõe, desde sua concepção originária, a mediação de interesses territoriais específicos através de lideranças locais dotadas de conhecimento e legitimidade regionais. A nacionalização forçada da competição política — consequência inevitável da concentração partidária — produz uma *déconnexion territoriale* (desconexão territorial) entre representantes e representados que enfraquece estruturalmente o pacto federativo.
Estados como Acre, Roraima, Amapá e Tocantins, historicamente dependentes de partidos menores para expressar suas especificidades regionais, encontram-se progressivamente submetidos a uma lógica política nacionalizada que pode não contemplar adequadamente suas demandas particulares. A representação regional, transformada em variável dependente de estratégias partidárias suprarregionais, perde sua capacidade de articulação autônoma, produzindo uma forma sutil, porém estrutural, de colonização política interna.
III. A Crítica Sociológica: Bourdieu e a Monopolização do Capital Político
AS ÚLTIMAS OPINIÕES
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A interpretação mais radical desta transformação encontra fundamentação teórica na sociologia política de Pierre Bourdieu, particularmente em sua análise do campo político desenvolvida em *Language and Symbolic Power* (1991). Para Bourdieu, o campo político funciona como um espaço de concorrência pela *monopolisation du capital politique* (monopolização do capital político), onde as regras aparentemente neutras do jogo democrático mascaram relações de dominação mais profundas.
A concentração partidária, nesta perspectiva, não representa uma racionalização técnica, mas uma estratégia de exclusão que utiliza a eficiência como *alibi* para consolidar o controle das elites políticas estabelecidas. A cláusula de barreira e a extinção das coligações operam como *barrières à l’entrée* (barreiras de entrada) que protegem os incumbentes da competição de novos atores políticos, perpetuando estruturas de dominação através de mecanismos institucionais que se apresentam como modernizadores.
Esta análise revela a dimensão ideológica subjacente ao discurso da racionalização: ao privilegiar a eficiência sobre a diversidade, o sistema político brasileiro adota implicitamente uma concepção tecnocrática da democracia que subordina a participação popular à governabilidade administrativa. O resultado é uma *démocratie sans demos* (democracia sem povo), formalmente pluralista, mas substantivamente controlada por uma oligarquia partidária que se reproduz através da exclusão sistemática de vozes dissidentes.
A concentração do fundo partidário e do tempo televisivo nas mãos de poucos blocos hegemônicos produz, ademais, uma desigualdade estrutural de recursos que compromete a própria ideia de competição democrática. Candidatos de partidos menores não competem apenas com programas ou propostas diferentes, mas enfrentam uma desvantagem material insubstituível que transforma a eleição em uma competição viciada desde sua origem.
IV. O Impacto sobre Movimentos Sociais: A Institucionalização da Marginalização
Uma dimensão particularmente crítica desta transformação refere-se ao impacto sobre a capacidade de institucionalização política dos movimentos sociais contemporâneos. Historicamente, movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas, LGBTQIA+ e de trabalhadores rurais encontraram nos partidos menores espaços de experimentação política e articulação de demandas que os grandes partidos, por sua natureza *catch-all*, tendiam a marginalizar ou cooptar de forma despolitizada.
A eliminação destes canais alternativos produz um efeito de *dépolitisation des mouvements sociaux* (despolitização dos movimentos sociais), forçando-os a escolher entre a marginalização completa ou a integração subordinada aos grandes blocos partidários. Esta segunda opção implica frequentemente a diluição de suas demandas específicas em programas genéricos que atendem mais às necessidades eleitorais dos grandes partidos do que às reivindicações originais dos movimentos.
O resultado é uma forma sofisticada de cooptação institucional que neutraliza o potencial transformador dos movimentos sociais ao integrá-los em estruturas políticas que reproduzem, em escala ampliada, as mesmas lógicas de dominação que eles originalmente contestavam. A democracia, assim, perde uma de suas fontes fundamentais de renovação e crítica, tornando-se progressivamente mais conservadora e menos permeável às demandas de transformação social.
V. Perspectivas Normativas: Repensando o Pluralismo Democrático
A questão central que emerge desta análise transcende o diagnóstico empírico para adentrar o terreno normativo fundamental: que tipo de pluralismo democrático desejamos construir? Esta pergunta não admite respostas técnicas neutras, pois implica escolhas valorativas sobre a natureza e os objetivos da democracia contemporânea.
Uma perspectiva otimista, inspirada na tradição liberal-pluralista de John Stuart Mill e seu ensaio *On Representative Government* (1861), sugeriria que a concentração partidária pode ser compensada por mecanismos internos de pluralização. Nesta visão, a *qualité représentative* (qualidade representativa) compensaria a redução quantitativa através de maior diversidade nas chapas dos grandes partidos, democratização interna dos processos decisórios e abertura sistemática a movimentos sociais organizados.
Esta perspectiva pressupõe, contudo, uma capacidade de autorregulação democrática dos grandes partidos que a experiência histórica raramente confirma. Organizações políticas de grande escala tendem, por sua própria lógica organizacional, a privilegiar a estabilidade sobre a inovação, a disciplina sobre a diversidade, a eficiência sobre a experimentação. A expectativa de que reproduzam internamente o pluralismo que eliminaram externamente revela-se, assim, teoricamente ingênua e empiricamente infundada.
Uma leitura mais realista, fundamentada na sociologia das organizações de Robert Michels e sua *lei de ferro da oligarquia*, alertaria para a tendência inevitável de burocratização e elitização dos grandes partidos. À medida que crescem em tamanho e complexidade, estas organizações desenvolvem interesses próprios de reprodução que podem conflitar com sua função representativa original. A concentração partidária, longe de resolver o problema da representação, pode estar criando novos mecanismos de exclusão ainda mais sutis e eficazes.
VI. Conclusão Crítica: Os Custos Democráticos da Racionalização
A transformação do sistema partidário brasileiro, apresentada como modernização técnica necessária, revela-se, sob análise crítica, como uma operação complexa de reconfiguração do poder político que privilegia sistematicamente a governabilidade sobre a representatividade. Esta escolha, longe de ser neutra, reflete uma concepção específica de democracia que subordina a participação popular à eficiência administrativa.
Os custos democráticos desta transformação são múltiplos e estruturais: exclusão sistemática de grupos historicamente marginalizados, enfraquecimento da representação regional, neutralização dos movimentos sociais, e consolidação de uma oligarquia partidária protegida por barreiras institucionais aparentemente técnicas. O resultado é uma democracia formalmente pluralista, porém substantivamente restritiva, que mantém as aparências da competição democrática enquanto limita drasticamente seu alcance social.
O desafio prospectivo não reside em reverter completamente estas transformações — algumas das quais respondem a problemas reais de governabilidade —, mas em construir arranjos institucionais capazes de conciliar eficiência governativa com inclusividade representativa. Isto exigirá criatividade institucional para desenvolver novos canais de participação política que compensem as perdas representativas produzidas pela concentração partidária, e vigilância democrática permanente para evitar que a racionalização se transforme em oligarquização.
Mais fundamentalmente, exigirá um debate público honesto sobre os trade-offs inerentes a qualquer sistema democrático e uma reflexão coletiva sobre que tipo de democracia desejamos construir — se uma democracia eficiente para poucos ou uma democracia inclusiva para muitos. Esta escolha, que as reformas partidárias colocaram implicitamente em questão, não pode ser deixada aos técnicos e especialistas, mas deve ser objeto de deliberação democrática ampla, respeitando o princípio fundamental de que *in democratia, populus iudex supremus* (na democracia, o povo é o juiz supremo).
