Estudos revelam como Israel desenvolveu sua política de opacidade nuclear à margem do TNP, expondo falhas no regime internacional de não-proliferação
A Literatura sobre o Programa Nuclear Israelense: Uma Análise Crítica
O programa nuclear israelense permanece como um dos temas mais sensíveis e complexos da política internacional contemporânea. Ao longo das últimas décadas, uma literatura acadêmica e jornalística significativa emergiu para examinar esta questão, oferecendo diferentes perspectivas sobre suas implicações para o direito internacional, a segurança regional e a governança global da não-proliferação nuclear.
Evolução Cronológica da Literatura
A análise sistemática do programa nuclear israelense ganhou impulso com “The Samson Option: Israel’s Nuclear Arsenal and American Foreign Policy” (1991), de Seymour Hersh. Este trabalho jornalístico trouxe à tona detalhes até então desconhecidos sobre as capacidades nucleares israelenses, baseando-se em fontes anônimas e documentos vazados. Hersh revelou a extensão da cooperação nuclear franco-israelense e as tensões com Washington, estabelecendo muitos dos temas que dominariam o debate posterior.
A obra de Hersh documenta como Israel desenvolveu seu arsenal nuclear através de parcerias clandestinas, particularmente com a França durante os anos 1950 e 1960, período em que Charles de Gaulle forneceu tecnologia nuclear sensível em troca de cooperação militar no Suez. O livro expõe as tensões entre Israel e os Estados Unidos quando Washington descobriu o programa nuclear israelense, revelando como sucessivas administrações americanas oscilaram entre oposição e tolerância tácita. Hersh argumenta que a estratégia nuclear israelense baseava-se na “opção Sansão” – uma referência bíblica à destruição mútua como último recurso – demonstrando como considerações estratégicas e culturais se entrelaçaram na formulação da política nuclear.
O marco definitivo veio com “Israel and the Bomb: Nuclear Secrecy and Democracy” (1998), de Avner Cohen. Esta obra acadêmica transformou o campo ao utilizar fontes documentais desclassificadas e entrevistas com protagonistas históricos. Cohen não apenas documentou o desenvolvimento técnico do programa, mas analisou suas implicações para as instituições democráticas israelenses, introduzindo o conceito de “opacidade nuclear” como estratégia de política externa.
Cohen fornece a análise mais sistemática sobre como o programa nuclear israelense evoluiu desde suas origens nos anos 1940 até sua maturação nos anos 1970. Baseando-se em arquivos desclassificados americanos, franceses e britânicos, além de entrevistas com figuras-chave como Shimon Peres e Ernst David Bergmann, Cohen documenta as decisões políticas que levaram à construção do reator de Dimona e ao desenvolvimento de capacidades de enriquecimento de urânio. Sua contribuição central é a análise da “barganha nuclear” israelense – como o país conseguiu desenvolver armas nucleares mantendo relações com potências nucleares estabelecidas através de uma política de ambiguidade calculada que evitava declarações explícitas sobre suas capacidades.
Michael Karpin complementou esta literatura com “The Bomb in the Basement: How Israel Went Nuclear and What That Means for the World” (2006), oferecendo uma narrativa mais acessível ao público geral e focando nos aspectos humanos e nas decisões políticas que moldaram o programa nuclear.
Karpin concentra-se nos aspectos operacionais e humanos do programa nuclear israelense, baseando-se em entrevistas com cientistas, engenheiros e oficiais militares envolvidos no projeto. Sua obra detalha a construção física das instalações nucleares, incluindo os desafios técnicos enfrentados na construção subterrânea de instalações de processamento nuclear e os métodos utilizados para ocultar essas atividades das inspeções internacionais. O livro também examina as implicações regionais do programa nuclear israelense, analisando como países árabes reagiram à percepção de uma capacidade nuclear israelense e como isso afetou cálculos estratégicos no Oriente Médio durante as décadas de 1960 e 1970.
A análise evoluiu com “The Worst-Kept Secret: Israel’s Bargain with the Bomb” (2010), também de Avner Cohen, que examinou como a política de ambiguidade nuclear se consolidou e suas consequências para a sociedade israelense contemporânea.
Nesta obra posterior, Cohen analisa como a política de ambiguidade nuclear se tornou uma instituição permanente na política israelense, examinando seus custos e benefícios para a democracia israelense. O autor documenta como o sigilo nuclear criou uma cultura de não transparência que se estendeu além das questões nucleares, afetando o debate público sobre política de segurança. Cohen argumenta que a “barganha” nuclear israelense – manter capacidades nucleares sem declará-las oficialmente – permitiu ao país evitar pressões internacionais para aderir ao TNP, mas ao custo de restringir o debate democrático sobre uma das questões mais fundamentais da segurança nacional. A obra também examina como gerações subsequentes de líderes israelenses mantiveram essa política, mesmo quando as circunstâncias estratégicas originais mudaram.
Análise Crítica das Perspectivas
Do ponto de vista do direito internacional, esta literatura revela tensões no regime de não-proliferação nuclear. O caso israelense ilustra as limitações do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) de 1968, particularmente sua incapacidade de lidar com Estados que desenvolveram capacidades nucleares fora do regime estabelecido.
A estratégia de “opacidade nuclear” israelense, documentada por Cohen, representa um desafio para os princípios de transparência que fundamentam o direito internacional contemporâneo. Esta política permite a Israel manter capacidades nucleares sem assumir as responsabilidades legais e políticas associadas ao status de potência nuclear declarada, criando um precedente para o sistema internacional.
As obras de Hersh e Karpin, embora valiosas na documentação histórica, levantam questões metodológicas sobre o uso de fontes anônimas em pesquisa sobre temas sensíveis de segurança nacional. A dependência de vazamentos e testemunhos não verificáveis, embora compreensível dadas as circunstâncias, limita a verificabilidade acadêmica de algumas conclusões.
Implicações para o Direito Internacional e as Proibições Jurídicas
A literatura revela como o programa nuclear israelense expõe contradições no regime internacional de não-proliferação, particularmente à luz das decisões jurisprudenciais internacionais sobre armas nucleares. A Corte Internacional de Justiça (CIJ), em seu Parecer Consultivo de 1996 sobre a “Legalidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares”, estabeleceu que o uso de armas nucleares seria “geralmente contrário aos princípios e regras do direito internacional humanitário”, especialmente devido à sua natureza indiscriminada e aos efeitos desproporcionais que causam.
Mais recentemente, a CIJ reafirmou essa posição no caso “Alegações de Genocídio sob a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial” (2023), enfatizando que qualquer ameaça nuclear constitui violação do direito internacional humanitário. O Tribunal Penal Internacional (TPI), embora ainda não tenha julgado casos específicos sobre armas nucleares, estabeleceu em seu Estatuto de Roma que o uso de armas que causem danos supérfluos ou sofrimento desnecessário constitui crime de guerra, categoria na qual se enquadram as armas nucleares.
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) tem sido categórico em suas posições institucionais desde 1945, declarando que “as armas nucleares são incompatíveis com os princípios do direito internacional humanitário”. Em 2022, o CICV reiterou sua posição de que nenhuma circunstância justifica o uso de armas nucleares, dados seus efeitos indiscriminados, desproporcionais e duradouros.
A tolerância seletiva das grandes potências a programas nucleares de aliados estratégicos, documentada por Cohen e Hersh, não apenas mina a universalidade dos princípios de não-proliferação, mas constitui cumplicidade em potenciais crimes contra a humanidade, conforme estabelecido pela jurisprudência internacional contemporânea.
O conceito de “ambiguidade nuclear” documentado por Cohen levanta questões sobre transparência e prestação de contas no direito internacional. Esta estratégia permite contornar as salvaguardas da AIEA e as obrigações do TNP, violando diretamente o princípio da boa-fé na execução de tratados internacionais, conforme estabelecido pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.
AS ÚLTIMAS OPINIÕES
Lacunas e Limitações
Apesar de sua contribuição, esta literatura apresenta limitações. A dependência de fontes principalmente ocidentais e israelenses resulta em uma perspectiva enviesada sobre as motivações e consequências regionais do programa nuclear. A ausência de perspectivas árabes e do Sul Global limita nossa compreensão das implicações mais amplas para a segurança regional.
Além disso, as restrições contínuas ao acesso a arquivos oficiais israelenses limitam a capacidade dos pesquisadores de oferecer análises completamente baseadas em evidências primárias. Grande parte da literatura permanece dependente de inferências baseadas em fontes indiretas.
Relevância Contemporânea
Esta literatura torna-se relevante no contexto das tensões nucleares contemporâneas no Oriente Médio, especialmente em relação ao programa nuclear iraniano. As estratégias documentadas no caso israelense oferecem percepções sobre como Estados podem desenvolver capacidades nucleares enquanto navegam pressões internacionais.
Para formuladores de política externa e especialistas em direito internacional, estes trabalhos destacam a necessidade de reformas no regime de não-proliferação nuclear para abordar casos de ambiguidade estratégica e garantir aplicação mais equitativa das normas internacionais, especialmente à luz das proibições jurídicas estabelecidas pelos tribunais internacionais.
Conclusão
A literatura sobre o programa nuclear israelense oferece uma janela para compreender as complexidades da política nuclear internacional e suas implicações para o direito internacional. Embora metodologicamente desafiadora devido às sensibilidades políticas envolvidas, esta produção acadêmica contribui para nossa compreensão dos limites e contradições do regime internacional de não-proliferação.
Esta análise deve ser contextualizada dentro do marco jurídico internacional que proíbe o uso e a ameaça de uso de armas nucleares, conforme estabelecido pela CIJ, pelo CICV e pelos princípios do direito internacional humanitário incorporados no Estatuto de Roma do TPI.
Para o futuro, é necessário que pesquisadores desenvolvam perspectivas mais diversificadas e metodologias que possam superar as limitações impostas pelo sigilo estatal, garantindo análises mais equilibradas e abrangentes desta questão para a segurança internacional contemporânea.
ANEXO: Perfil dos Autores
Seymour Hersh – Jornalista investigativo americano, ganhador do Prêmio Pulitzer em 1970 por sua cobertura do massacre de My Lai. Especialista em temas de segurança nacional e política externa americana, autor de mais de uma dezena de livros sobre espionagem e operações militares. Correspondente por décadas do The New York Times e The New Yorker.
Avner Cohen – Acadêmico israelense-americano, PhD em Filosofia pela Universidade de Chicago. Professor do Centro de Estudos de Não-Proliferação do Instituto de Tecnologia de Monterey. Autoridade mundial sobre o programa nuclear israelense, com acesso a fontes primárias e ex-funcionários do establishment de segurança israelense.
Michael Karpin – Jornalista e escritor israelense, correspondente por décadas da televisão israelense. Especialista em temas de segurança e defesa, com experiência na cobertura de questões militares e de inteligência no Oriente Médio. Autor de várias obras sobre história militar israelense.
REFERÊNCIAS
COHEN, Avner. Israel and the Bomb: Nuclear Secrecy and Democracy. New York: Columbia University Press, 1998.
COHEN, Avner. The Worst-Kept Secret: Israel’s Bargain with the Bomb. New York: Columbia University Press, 2010.
COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Nuclear weapons and international humanitarian law. Geneva: ICRC, 2022.
CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Legality of the Threat or Use of Nuclear Weapons. Advisory Opinion, I.C.J. Reports 1996, p. 226.
CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Allegations of Genocide under the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination. Provisional Measures, Order of 26 January 2023.
HERSH, Seymour. The Samson Option: Israel’s Nuclear Arsenal and American Foreign Policy. New York: Random House, 1991.
KARPIN, Michael. The Bomb in the Basement: How Israel Went Nuclear and What That Means for the World. New York: Simon & Schuster, 2006.
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. Rome Statute of the International Criminal Court. The Hague: ICC, 1998.
