Condição de gênero passa a prevalecer sobre a idade em casos de violência doméstica contra meninas
Em 13 de fevereiro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou decisão que tenta resolver um dos mais tensos conflitos de competência no direito brasileiro. No julgamento do REsp 2015598/PA, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1186), a Terceira Seção fixou tese que estabelece a prevalência da Lei Maria da Penha sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quando a vítima é do sexo feminino em contexto de violência doméstica e familiar.
O Caso Concreto e a Controvérsia
O recurso especial foi interposto pelo Ministério Público do Estado do Pará contra acórdão do Tribunal de Justiça paraense que declarou a competência da Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Santarém/PA para julgar crimes de estupro de vulnerável cometidos contra três filhas menores do investigado.
O TJPA entendeu que “a violência sexual praticada no âmbito doméstico e familiar contra as vítimas do sexo feminino atrai a aplicação da Lei Maria da Penha, prevalecendo sobre a questão etária”. Esta decisão gerou o recurso do Ministério Público, criando a oportunidade para o STJ uniformizar nacionalmente o entendimento sobre a questão.
Marco Temporal: Evolução Legislativa da Proteção às Vítimas
Para compreensão da complexidade desta decisão, situa-se historicamente os marcos que moldaram o atual sistema de proteção no Brasil:
1990 – Lei 8.069 (ECA): O Estatuto da Criança e do Adolescente revoluciona o tratamento jurídico da infância no Brasil, substituindo a doutrina da situação irregular pela proteção integral. Cria o sistema de garantias de direitos e estabelece medidas de proteção específicas.
1994/1995 – Convenção de Belém do Pará: A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher é adotada pela OEA em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995, estabelecendo as bases conceituais da violência de gênero no direito internacional.
2006 – Lei 11.340 (Lei Maria da Penha): Marco na proteção das mulheres, cria mecanismos específicos para coibir a violência doméstica e familiar, estabelecendo medidas protetivas de urgência e alterando procedimentos penais. Representa resposta direta às condenações internacionais do Brasil.
2014 – Lei 13.010 (Lei do Menino Bernardo): Altera o ECA para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados sem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante. Marca a transição de uma cultura punitiva para uma abordagem educativa na relação familiar.
2015 – Lei 13.105 (Novo CPC): O Código de Processo Civil estabelece o regime dos recursos repetitivos (art. 1.036), mecanismo utilizado pelo STJ para uniformizar a interpretação jurisprudencial como no presente caso.
2017 – Lei 13.431 (Lei da Escuta Especializada): Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, criando procedimentos específicos para sua oitiva e introduzindo metodologias especializadas de atendimento.
2025 – Tema Repetitivo 1186: A decisão do STJ consolida três décadas de evolução legislativa, estabelecendo a prevalência da perspectiva de gênero sobre a idade em contextos de violência doméstica contra meninas.
A Tese Jurídica Fixada e Seus Fundamentos
Retomando… A Terceira Seção do STJ, por unanimidade, negou provimento ao recurso e fixou a seguinte tese para o Tema Repetitivo 1186:
“1. A condição de gênero feminino é suficiente para atrair a aplicabilidade da Lei Maria da Penha em casos de violência doméstica e familiar, prevalecendo sobre a questão etária; 2. A Lei Maria da Penha prevalece quando suas disposições conflitarem com as de estatutos específicos, como o da Criança e do Adolescente”.
O relator, Ministro Ribeiro Dantas, estruturou sua fundamentação em quatro pilares técnico-jurídicos: 1. Interpretação Literal do Art. 13 da Lei Maria da Penha: A decisão enfatizou que a interpretação do artigo 13 da Lei 11.340/2006 “indica a prevalência de suas disposições quando em conflito com estatutos específicos, como o da Criança e do Adolescente”. 2. Jurisprudência Consolidada do STJ: O acórdão citou precedentes, como o RHC 121.813/RJ (Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 20/10/2020), que já reconheciam que “a vulnerabilidade da mulher é preponderante sobre a vulnerabili dade etária”. 3. Configuração da Violência de Gênero: A decisão estabeleceu que “a violência de gênero é configurada pela condição de mulher da vítima, independentemente de sua idade, quando a violência ocorre no âmbito doméstico ou familiar”. 4. Delimitação da Controvérsia: O STJ delimitou que “a idade da vítima, por si só, não é elemento apto a afastar a competência da vara especializada para processar os crimes perpetrados contra vítima mulher, seja criança ou adolescente, no contexto de violência doméstica e familiar”.
Contexto Empírico: Os Números da Violência
A decisão do STJ ganha relevância quando contextualizada pelos dados. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), foram registrados 74.930 casos de estupro no Brasil em 2023, sendo que 61,8% das vítimas eram menores de 14 anos.
O Disque Direitos Humanos registrou, no primeiro semestre de 2023, 95.247 denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Estes números demonstram a intersecção crítica entre violência de gênero e violência doméstica contra crianças do sexo feminino.
Adicionalmente, dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania indicam que 13,4% das vítimas de violência sexual pertencem à população LGBTQIAP+, evidenciando o enredamento das questões de identidade de gênero que a tese pode enfrentar.
Diálogo Jurisprudencial com o Supremo Tribunal Federal
A análise da posição do STF em questões similares revela uma tendência de proteção ampliada que dialoga positivamente com a tese do STJ. Em outros casos específicos, o STF tem demonstrado sensibilidade às questões de gênero e interseccionalidade de vulnerabilidades.
São os precedentes, que merecem destaque por contribuírem com essa evolução jurisprudencial as ações ADI 4424 e ADO 26, como expõe em seguida.
ADI 4424/DF (Rel. Min. Marco Aurélio, julgada em 09/02/2012): O STF declarou a inconstitucionalidade de dispositivos do Código Penal que condicionavam a persecução penal de crimes sexuais à representação da vítima. Com isso, a decisão reconheceu que crimes sexuais afetam não apenas a vítima individual, mas estabeleceu um sujeito passivo do tipo penal fixado como a sociedade como um todo, estabelecendo, de tal maneira, que o Estado detém interesse direto na persecução desses crimes.
ADO 26/DF (Rel. Min. Celso de Mello, julgada em 13/06/2019): Embora centrada na criminalização da homotransfobia, a decisão fixou antecedente sobre interpretação extensiva de normas protetivas em casos de vulnerabilidade. Dito isso, o STF reconheceu que a proteção contra discriminação deve ser interpretada de forma ampliativa, não restritiva, mesmo no polêmico caso de uma hermenêutica aplicada ao Direito Penal.
AS ÚLTIMAS OPINIÕES
Alinhamento Constitucional
A tese do STJ encontra respaldo na jurisprudência constitucional que tem consolidado a interpretação do art. 227 da CF/88 de forma sistêmica com o art. 226, §8º (proteção à mulher em situação de violência doméstica). O STF firmou o reconhecimento de que a proteção constitucional dos grupos minoritários e/ou vulneráveis não pode operar em compartimentos estanques.
Análise das Interrelações Normativas Complexas
Esta evolução legislativa criou um sistema complexo que a decisão do STJ deve agora harmonizar. A compreensão adequada da tese exige análise detalhada de como estas normas se relacionam e, potencialmente, colidem.
ECA e Lei do Menino Bernardo: Filosofias em Tensão
A Lei 13.010/2014 alterou o ECA para estabelecer que “a criança e o adolescente têm o direito de ser educados sem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante” (art. 18-A). Esta norma adotou uma abordagem educativa-restaurativa, prevendo medidas como encaminhamento dos pais a programas de orientação (art. 18-B).
Já a Lei Maria da Penha opera com uma lógica punitiva-protetiva, enfatizando medidas restritivas ao agressor e proteção imediata à vítima. Esta diferença de abordagem e de vieses pode gerar conflitos em casos onde a mesma conduta poderia ser enquadrada em ambos os regimes.
A Lei da Escuta Especializada: Desafios Procedimentais
A Lei 13.431/2017 introduziu rigorosos padrões procedimentais para oitiva de crianças vítimas de violência. Esta norma estabelece distinção fundamental entre escuta especializada (art. 7º – procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança perante órgão da rede de proteção) e depoimento especial (art. 8º – procedimento judicial de oitiva de criança vítima ou testemunha).
A migração da competência para as Varas de Violência Doméstica cria questão técnica complexa. O art. 11 da Lei 13.431/2017 exige que o depoimento especial seja realizado em ambiente específico, com profissionais habilitados conforme art. 5º, utilizando metodologia adequada à idade e desenvolvimento da criança.
Questões de Identidade de Gênero
A tese do STJ objeto central da reflexão aqui feita fala em “condição de gênero feminino”, contudo não definiu este conceito. Em contexto de crescente reconhecimento da diversidade de gênero, surgem questões que devem ser consideradas à luz da Resolução 175/2013 do CNJ, que reconhece a identidade de gênero auto-percebida.
Problematizando: Dificuldades Práticas de Implementação
O Paradoxo da Especialização Inadequada
A ironia desta decisão reside em seu próprio mérito: ao buscar proteção especializada, pode-se estar oferecendo atendimento menos adequado. As varas especializadas possuem salas adequadas para depoimento infantil conforme exigido pela Lei 13.431/2017?
Uma criança vítima de violência demanda abordagem metodológica, ambiente físico e técnicas de inquirição completamente distintas de uma mulher adulta em situação de violência doméstica. Estão as cortes preparadas para isso?
Sobrecarga Estrutural
As Varas Especializadas em Violência Doméstica já enfrentam sobrecarga crônica.
A inclusão dos crimes contra meninas poderá agravar esta situação, especialmente considerando que a Lei da Escuta Especializada exige procedimentos mais complexos e demorados? O que será feito para essa migração de procedimentos das varas atuais para as varas de violência doméstica?
Impactos Práticos e Necessidades de Adaptação
A implementação efetiva da tese demanda transformações atitudinais, sociais e estruturais significativas no sistema de justiça brasileiro:
Como se dará a adaptação das varas especializadas para atender crianças conforme Lei 13.431/2017, incluindo salas lúdicas, equipamentos de gravação e sistemas de videoconferência para depoimento especial?
Com relação ao desenvolvimento de sistemas informacionais integrados entre as redes de proteção à mulher e à criança, será possível o compartilhamento efetivo e seguro de informações e evitando duplicação de procedimentos?
Magistrados, magistradas e demais profissionais do sistema de justiça serão treinados em técnicas de escuta de crianças especializada e metodologias lúdicas de atendimento?
Na dimensão da política pública, como se darão os protocolos e diretrizes para articulação entre Varas de Violência Doméstica, Conselhos Tutelares, CREAS e rede de proteção à mulher, evitando sobreposições (ou lacunas)?
Considerações Finais: Um Marco em Construção
A decisão do STJ no Tema 1186 representa marco conceitual na proteção integral dos direitos das mulheres e crianças no Brasil.
Ao estabelecer que a condição de gênero feminino é suficiente para atrair a Lei Maria da Penha, independentemente da idade, o tribunal superior demonstra compreensão sofisticada da interseccionalidade de vulnerabilidades que caracteriza a violência doméstica contra meninas.
O sucesso desta mudança jurídico-paradigmática depende, fundamentalmente, da adequação estrutural do sistema de justiça e da harmonização entre os diferentes marcos normativos aplicáveis.
Os desafios identificados – desde a inadequação atual das varas especializadas para atendimento infantil até a eventual sobrecarga processual – não diminuem o mérito da decisão. Todavia, o dilema jurídico-procedimental sinaliza a necessidade de implementação cuidadosa, com planejamento participativo e envolvimento da sociedade civil.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República, 2006.
BRASIL. Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014. Altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. Brasília, DF: Presidência da República, 2014.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015.
BRASIL. Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Brasília, DF: Presidência da República, 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424/DF. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 9 fev. 2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 13 jun. 2019.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 2.015.598/PA. Tema Repetitivo 1186. Relator: Min. Ribeiro Dantas. Terceira Seção. Brasília, DF, 6 fev. 2025. DJe: 13 fev. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus 121.813/RJ. Relator: Min. Rogério Schietti Cruz. Sexta Turma. Brasília, DF, 20 out. 2020.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. Brasília: CNJ, 2013.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”). Belém do Pará, 1994.
