Audiência pública do CNDH sobre a nova indicação ao Supremo expõe não apenas o déficit de gênero e raça na composição da Corte, mas também o apagamento histórico de pessoas com deficiência
Elevar o tom do debate exige aprofundar a crítica, indo da constatação da ausência para a análise de suas causas estruturais. O debate sobre gênero e, mais recentemente, étnico-racial no STF é essencial. Mas há outro ponto cego de Têmis: o capacitismo que exclui corpos mancos e mentes outras nas Cortes Superiores. Teremos uma audiência pública convocada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) sobre a vindoura nomeação ao Supremo Tribunal Federal (STF) como um rito democrático; é um diagnóstico de um abismo representativo.
O tema central, “Expectativas para uma nomeação representativa”, é, em si, um eufemismo que aponta para uma falha crônica na legitimação demográfica da mais alta corte do país.
É inadiável, e moralmente imperativo, que o debate público se concentre na paridade e pluralidade de gênero e na pluralidade étnico-racial. A sub-representação de mulheres, especialmente mulheres negras, em um tribunal que decide o destino de uma nação majoritariamente feminina e negra, é uma distorção que corrói a própria noção de justiça.
Contudo, este mesmo debate, ao focar-se nestas frentes, revela um silêncio sintomático, um ponto cego que expõe a seletividade de nossa própria concepção de “diversidade”. Enquanto discutimos representatividade, a pauta da deficiência permanece na penumbra, tratada como uma nota de rodapé e não como um pilar central dos direitos humanos.
A polêmica que precisa ser inflamada, portanto, é mais profunda: quando o Brasil, ou qualquer de seus vizinhos, indicará o primeiro jurista com deficiência para sua corte constitucional? Uma análise panorâmica das supremas cortes em toda a América Latina revela um vácuo absoluto. Esta ausência continental de magistrados com deficiência em postos de cúpula não é fruto do acaso, nem da falta de mérito.
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É o resultado de um projeto deliberado de exclusão, fundamentado no capacitismo estrutural que permeia o sistema de justiça. O capacitismo é a presunção da incapacidade. É a barreira atitudinal que opera de forma mais insidiosa que as escadas de um tribunal sem rampa. Ele atua diretamente na filtragem dos candidatos ao “notável saber jurídico” e à “reputação ilibada”.
O sistema de indicação, dominado por círculos fechados de poder, implicitamente adiciona um requisito não escrito: a conformidade a um padrão de corpo e funcionalidade que nada tem a ver com a capacidade intelectual ou a integridade moral. No contexto do “debate e rebate”, a resposta padrão a essa provocação é a falácia da meritocracia. Dirão que a vaga não deve ser preenchida por “cotas”, mas pelo “mérito”.
O argumento é frágil, pois ignora que o capacitismo é, precisamente, o mecanismo que impede que o mérito de juristas com deficiência seja sequer visto. Ele confunde a deficiência física, sensorial ou neurológica com uma deficiência intelectual, um resquício de uma visão eugenista que deveria estar sepultada. A consequência é uma corte epistemicamente incompleta. O STF, assim como seus pares latino-americanos, legisla ativamente sobre a vida de dezenas de milhões de cidadãos e cidadãs com deficiência.
Decide sobre a constitucionalidade do Estatuto da Pessoa com Deficiência (LBI), sobre educação inclusiva, sobre o direito ao trabalho e sobre a própria definição de “vulnerabilidade”. No entanto, o faz invariavelmente a partir de uma perspectiva externa, asséptica, quase teórica. Falta-lhe a “perspectiva encarnada” — a compreensão vivida e não apenas estudada do que é a discriminação pela barreira, do que é ter sua autonomia diuturnamente questionada.
Portanto, a questão real não é “quando” teremos um ministro PcD no STF. A questão é: quando o sistema político e jurídico brasileiro terá a coragem de romper o ciclo de invisibilidade e parar de presumir a incapacidade, reconhecendo que a deficiência não é um fardo, mas uma fonte de resiliência e uma perspectiva jurídica única que falta desesperadamente ao nosso panteão da justiça?
Enquanto o sistema enxergar a deficiência como um asterisco ou um impedimento, e não como uma faceta essencial da diversidade humana, a “representatividade” que o CNDH almeja será, na melhor das hipóteses, uma conquista parcial. E a estátua de Têmis, embora vendada, continuará a enxergar seletivamente.
