Dependência química e advocacia: por que a exclusão profissional fere a constituição e os direitos humanos

Uma análise do estatuto da advocacia e os impactos da exclusão profissional à luz do novo marco legal de inclusão

Por Vinicius Mi - sábado, 30/11/2024 - 09h03

Vinicius Valentin Raduan Miguel

Advogado e pesquisador associado do Desinstitute, organização que atua com temas de saúde mental e direitos humanos

Porto Velho, RO – O debate sobre a constitucionalidade do dispositivo do Estatuto da Advocacia que prevê sanções, incluindo a exclusão profissional, para casos de “embriaguez ou toxicomania habituais” ganhou nova dimensão diante das recentes mudanças legislativas e jurisprudenciais.

A questão transcende o âmbito meramente disciplinar, tocando em aspectos fundamentais de direitos humanos, saúde pública e dignidade profissional.

A evolução do ordenamento jurídico brasileiro nas últimas duas décadas demonstra uma clara mudança de paradigma no tratamento das questões relacionadas à dependência química.

Partimos de uma abordagem punitivista, que tratava a questão como falha moral ou disciplinar, para uma compreensão mais humanizada e cientificamente embasada, que reconhece a dependência química como questão de saúde pública.

Marco Legal em Evolução

O primeiro passo significativo nessa evolução foi dado com a Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica.

Esta legislação revolucionou o tratamento jurídico das questões de saúde mental no Brasil, estabelecendo direitos fundamentais e vedando discriminações. Cinco anos depois, a Lei 11.343/2006 consolidou a distinção entre usuários e traficantes, priorizando medidas de prevenção e reinserção social para os primeiros.

A grande revolução, contudo, veio com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), que alterou radicalmente o conceito de incapacidade civil no direito brasileiro.

A “toxicomania”, antes considerada causa de incapacidade absoluta, passou a ser compreendida sob a ótica da inclusão e da não-discriminação.

Esta mudança tem profundas implicações para todas as áreas do direito, incluindo o direito administrativo-disciplinar.

Coroando essa evolução, o Supremo Tribunal Federal, em 2024, no julgamento do RE 635659, consolidou a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, reforçando a abordagem da questão como matéria de saúde pública, não de direito penal.

Inconstitucionalidade manifesta

Diante desse novo marco legal, o dispositivo do Estatuto da Advocacia que prevê a exclusão profissional por “toxicomania habitual” revela-se manifestamente inconstitucional.

A incompatibilidade se manifesta em múltiplos níveis.

Primeiro, há violação direta a princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, CF), o direito à saúde (Art. 196, CF) e a não-discriminação. A Constituição Federal estabelece um paradigma de proteção e inclusão que é frontalmente contrariado pela norma estatutária.

Segundo, o dispositivo colide com todo o arcabouço legal posterior, especialmente com o Estatuto da PcD, que veda expressamente a discriminação baseada em condições de saúde e garante o direito ao trabalho em igualdade de condições.

Terceiro, a norma representa uma abordagem retrógrada, que trata como infração disciplinar-profissional uma condição reconhecida pela ciência e pelo direito como questão de saúde pública.

Impactos práticos e discriminação

Na prática, a manutenção desse dispositivo no Estatuto da Advocacia produz efeitos nefastos.

Advogados/as que necessitam de tratamento para dependência química frequentemente o evitam, temendo as consequências profissionais. Isso agrava o problema de saúde e, paradoxalmente, pode comprometer mais severamente o exercício profissional e a autonomia destes.

Além disso, a norma cria uma discriminação injustificada. A preservação desse dispositivo no Estatuto da Advocacia mantém uma abordagem punitivista anacrônica e assíncrona com o novo momento constitucional.

Necessidade de atualização legal

A solução passa necessariamente por uma atualização normativa.

É imperativo que o Estatuto da Advocacia se alinhe ao novo marco legal, substituindo a abordagem punitivista por uma perspectiva de saúde mental, acolhimento humanizado e suporte profissional.

Essa atualização deve contemplar:

  1. Reconhecimento da dependência química como questão de saúde
  2. Garantia de tratamento sem prejuízo do registro profissional
  3. Implementação de programas de suporte institucional
  4. Protocolos claros de afastamento temporário e retorno ao trabalho
  5. Medidas de prevenção e acompanhamento

Enquanto essa atualização não ocorre, é necessário que os tribunais de ética da OAB adotem uma interpretação conforme a Constituição, privilegiando o tratamento e a reabilitação sobre a punição.

A manutenção de dispositivos discriminatórios no Estatuto da Advocacia viola direitos fundamentais. A advocacia, que historicamente esteve na vanguarda da defesa dos direitos humanos, não pode manter em seu estatuto normas que perpetuam preconceitos e violam direitos fundamentais.

É hora de a comunidade jurídica se mobilizar para atualizar o Estatuto da Advocacia, adequando-o ao novo paradigma legal e constitucional. Isso não significa abandonar o compromisso com a qualidade dos serviços jurídicos; é sim reconhecer que questões de saúde mental exigem tratamento adequado e não punição, discriminação e expulsão.

A exclusão profissional por dependência química não apenas é inconstitucional; é também ineficaz e prejudicial. Uma abordagem moderna, baseada em evidências científicas e alinhada aos princípios constitucionais, protegerá os interesses da sociedade como também fortalecerá a dignidade da profissão.

O momento é oportuno para a mudança. Com as recentes decisões do STF (em 2024) e a consolidação do novo marco legal da inclusão, manter dispositivos discriminatórios no Estatuto da Advocacia tornou-se insustentável.

É uma necessidade adequar as normas profissionais aos valores constitucionais e de direitos fundamentais que protejam uma concepção inclusiva e acolhedora dos sofrimentos psíquicos.

AUTOR: VINICIUS MI|GUEL





COMENTÁRIOS:

NOME: Dulce Cavalcante

COMENTÁRIO:

Muito inteligente e pertinente seus artigos. Parabéns

30/11/2024