A Declaração Universal dos Direitos Humanos: o aniversário da Carta

Entre debates e resistências, a construção de um marco global para a dignidade humana

Por Vinicius Miguel - terça-feira, 10/12/2024 - 11h17

Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, é um marco na consciência jurídica universal.

Nascida em meio aos escombros da Segunda Guerra Mundial, seu texto reflete a aspiração de um mundo exaurido pelas tragédias do autoritarismo, da violência em massa e da degradação humana.

O documento, uma construção coletiva de múltiplos saberes e tradições, consolidou-se como pedra angular de um ordenamento global em torno da dignidade da pessoa humana.

O contexto histórico da emergência da DUDH

A gênese da DUDH não pode ser dissociada dos horrores que marcaram a primeira metade do século XX.

O genocídio perpetrado contra milhões de judeus e outros grupos vulneráveis, os absurdos do colonialismo, a destruição de cidades inteiras por conflitos armados e o uso de armas nucleares suscitaram na comunidade internacional a necessidade de erigir balizas éticas universais.

Nesse cenário, a fundação das Nações Unidas em 1945 configurou-se como um ponto de inflexão, com a Carta da ONU assumindo a defesa dos direitos humanos como um de seus pilares fundamentais.

O texto da DUDH foi construído sob o imperativo de transcender os sistemas jurídicos domésticos e as particularidades culturais, instaurando um arcabouço normativo que afirmasse valores universais. Contudo, esse processo não se deu sem contradições, debates e oposição, evidenciando que os ideais de universalidade são, frequentemente, confrontados pela resistência de interesses particulares e de tradições locais.

A construção coletiva da declaração

A tarefa de redigir o documento foi confiada à Comissão de Direitos Humanos da ONU, presidida por Eleanor Roosevelt, que desempenhou papel fundamental na mediação entre perspectivas divergentes.

A comissão reuniu figuras intelectualmente notáveis, como o libanês Charles Malik, o chinês Peng Chun Chang, o francês René Cassin e o canadense John Humphrey. A pluralidade de seus membros contribuiu para que a Declaração fosse permeada por uma rica interação entre visões culturais, filosóficas e jurídicas.

John Humphrey, com sua formação em direito internacional, elaborou um rascunho inicial extenso que serviu de base para os debates. A ele seguiu-se René Cassin, que deu ao texto a forma concisa e elegante que conhecemos hoje, estruturada em um preâmbulo e 30 artigos.

Peng Chun Chang insistiu que o texto refletisse uma harmonia entre tradições ocidentais e orientais, incorporando elementos como a interdependência e a responsabilidade coletiva, essenciais à visão confucionista. Por sua vez, Malik destacou a dimensão espiritual dos direitos humanos, reiterando que a dignidade humana está enraizada na liberdade e no espírito.

A universalidade do texto final foi fruto de uma interação negociada e dialogada. O compromisso entre direitos civis e políticos, postulados pelas representações diplomáticas de democracias ocidentais, e, lado outro, a pauta de direitos econômicos, sociais e culturais, promovidos pelos países do bloco socialista, foi alcançado com intensos debates.

Os desafios e oposições no processo de adoção

A aprovação da DUDH, embora simbólica de um consenso internacional, não ocorreu sem resistência. Os debates revelaram oposições profundas, muitas vezes moldadas pelas circunstâncias de relações internacionais da época (e que muitas, persistem).

A Guerra Fria permeou as discussões, com os Estados Unidos defendendo a primazia das liberdades individuais e a União Soviética enfatizando os direitos econômicos e sociais. A liberdade de expressão e religião, por exemplo, foi criticada pelos soviéticos como um risco de subversão ideológica.

Potências globais com raízes coloniais como o Reino Unido e a França manifestavam inquietação e resistência quanto aos artigos que defendiam a igualdade racial e a autodeterminação. Já a África do Sul, ainda sob o regime do apartheid, absteve-se de apoiar o texto: era óbvio que seu regime racista não poderia subsistir ao teor jurídico da DUDH.

Algumas nações árabes, meso-orientais e asiáticas questionaram a universalidade da Declaração, apontando que sua ênfase nos direitos individuais ignorava sistemas culturais e jurídicos que priorizavam os deveres coletivos.

O artigo que garantia o direito ao casamento livre enfrentou resistências em sociedades onde o casamento arranjado era uma tradição profundamente enraizada, apenas para firmar um exemplo.

O conteúdo da declaração e seu impacto

Os 30 artigos que compõem a DUDH constituem uma síntese de direitos, garantias e liberdades fundamentais, abrangendo tanto direitos civis e políticos quanto direitos econômicos, sociais e culturais. Entre seus princípios centrais estão a igualdade, a liberdade, e a dignidade da pessoa humana.

A DUDH serviu (e serve) como base para tratados internacionais subsequentes, como os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados em 1966.

Sua influência estende-se também à jurisprudência de tribunais internacionais e regionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual faço referência reiterada em minha própria trajetória acadêmica e judicial.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos representa um dos esforços da humanidade em reconhecer a centralidade da dignidade humana no plano normativo. Como bem observou René Cassin, o texto é ao mesmo tempo um “testemunho da barbárie” e uma “mensagem de esperança”.

Cabe à comunidade internacional proteger os princípios da Declaração, ampliá-los, para que possam atender às novas demandas e desafios que emergem no horizonte da humanidade, buscando sua concretização cotidiana.


Referências

CASSIN, René. La pensée de René Cassin: Prix Nobel de la Paix 1968. Paris: CNRS, 1985.

HUMPHREY, John P. Human Rights & the United Nations: A Great Adventure. New York: Transnational Publishers, 1984.

MALIK, Charles. The Challenge of Human Rights: An Intercultural Dialogue. Oxford: Oxford University Press, 1959.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





COMENTÁRIOS:

NOME: JULIANO DOS SANTOS CORTES

COMENTÁRIO:

Muito bom o material

11/12/2024