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JURÍDICO DESCOMPLICADO
A metamorfose do sistema Partidário brasileiro

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Reformas eleitorais e fusões partidárias reconfiguram o sistema político brasileiro entre 2017 e 2025, inaugurando uma nova era de concentração institucional,

Por Vinicius Miguel - quarta-feira, 11/06/2025 - 20h34

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I. Genealogia das Transformações Muito Recentes (2017-2025)

A arquitetura partidária brasileira atravessa, desde 2017, uma mutação estrutural de proporções inéditas, cujas implicações transcendem o mero reordenamento quantitativo para configurar uma verdadeira revolução institucional no tecido democrático nacional. Esta metamorfose encontra suas origens em três marcos legislativos sequenciais que, articulados produziram efeitos sistêmicos de alcance transformador.

Cronologicamente, a primeira ruptura emerge em 2017 com a promulgação da Lei nº 13.488, que extingue as coligações proporcionais, rompendo com uma tradição de flexibilidade aliancística que caracterizara o sistema desde a redemocratização — uma verdadeira *rupture avec le passé* (ruptura com o passado).

Em 2018, a Lei nº 13.655 institui a cláusula de barreira progressiva, estabelecendo patamares mínimos de desempenho eleitoral para acesso ao fundo partidário e ao tempo de propaganda gratuita. Finalmente, entre 2021 e 2024, observa-se uma terceira fase marcada por fusões estratégicas paradigmáticas: a criação da União Brasil (DEM-PSL em 2021), seguida por outras articulações federativas que consolidam blocos hegemônicos de maior envergadura, estabelecendo uma nova política partidária.

 II. A Dialética Hegemônica: Reconfiguração do Campo Político

As transformações em curso revelam-se como manifestação contemporânea da luta pelo controle dos aparelhos ideológicos de Estado, operando através de uma estratégia que transcende a mera competição eleitoral. As reformas sucessivas funcionam como dispositivos de racionalização do campo político que compelem os partidos a abandonar o fragmentarismo atomizado em direção a uma coagulação orgânica de maior densidade programática — um processo que obedece ao princípio *divide et impera* (divide e governa) aplicado inversamente: concentra para dominar.

A emergência das federações partidárias — União Brasil, federação PSDB-Cidadania, aliança MDB-Republicanos — configura aquilo que podemos denominar “aparelhos de consenso”: estruturas organizativas capazes de articular hegemonia através da mediação institucional.

O mecanismo hegemônico opera, fundamentalmente, através da apropriação dos recursos institucionais — fundo partidário, tempo televisivo, estrutura organizativa — que se convertem em vetores de consolidação discursiva. Esta concentração produz um efeito de “filtragem institucional” que privilegia as formações partidárias dotadas de capacidade de articulação suprarregional e coerência programática, estabelecendo uma nova *hiérarchie des légitimités* (hierarquia das legitimidades).

 III. Leitura Bobbiana: Racionalização Institucional e Novo Equilíbrio Democrático

A análise de Norberto Bobbio, desenvolvida em obras como *O Futuro da Democracia* (1984) e *Liberalismo e Democracia* (1988), oferece uma chave interpretativa centrada na racionalização institucional do sistema político. Sob esta ótica, as transformações em curso representam uma redefinição qualitativa do pluralismo democrático, que evolui de um modelo quantitativo-extensivo para um padrão qualitativo-intensivo, operando uma metamorfose institucional.

A imposição da cláusula de barreira e a extinção das coligações proporcionais estabelecem aquilo que Bobbio caracterizaria como “racionalidade legal-normativa” — um conjunto de regras procedimentais que disciplinam a competição democrática segundo critérios de eficiência governativa. O resultado é a emergência de um sistema com menor diversidade quantitativa, porém dotado de maior coerência programática e capacidade de governança, seguindo a máxima *qualitas non quantitas* (qualidade, não quantidade).

Esta evolução corresponde à necessidade de equilibrar pluralismo e governabilidade nas democracias contemporâneas através de uma racionalização do campo político. O “livre mercado político” da era anterior cede lugar a um modelo regulado pela racionalidade jurídico-institucional, produzindo um arranjo mais funcional para a tomada de decisões coletivas em sociedades complexas.

IV. Análise Quantitativa: Dinâmica Histórica das Candidaturas (2018-2026)

A trajetória histórica das candidaturas no Brasil evidencia o impacto cumulativo das reformas eleitorais recentes. Em 2018, ainda sob a lógica da fragmentação partidária plena, o sistema registrou aproximadamente 30 mil candidaturas, configurando o auge da dispersão institucional.

Com a introdução da cláusula de barreira e o início de seu funcionamento prático, as eleições de 2022 já apresentaram uma leve retração, totalizando 28.274 candidaturas, o que representou uma redução de 5,8% em relação ao ciclo anterior. Agora, projetando-se para 2026, com a consolidação das federações partidárias e a maturação completa dos instrumentos de racionalização normativa, espera-se uma queda ainda mais expressiva, situando o número de candidaturas entre 20 mil e 22 mil — uma retração de aproximadamente 22% a 29% —, configurando assim o maior ajuste estrutural desde a redemocratização.

As estimativas para 2026 baseiam-se em três variáveis analíticas fundamentais: primeiro, a consolidação dos cinco blocos partidários principais (União Brasil, federação PSDB-Cidadania, articulação MDB-Republicanos, aliança PT-PCdoB-PV, e possível federação PSOL-Rede); segundo, o efeito dissuasório da cláusula de barreira sobre candidaturas de partidos menores; terceiro, a racionalização dos recursos disponíveis através da concentração federativa.

A redução projetada de 6.000 a 8.000 candidaturas representa uma contração de aproximadamente 25% em relação a 2022, magnitude que situa esta transformação entre as mais significativas da história democrática brasileira desde 1988.

V. Síntese Interpretativa: Ruptura Qualitativa e Reconfiguração Hegemônica

A convergência das análises teóricas revela que as transformações em curso transcendem o mero reajuste quantitativo para configurar uma ruptura qualitativa no padrão de funcionamento do sistema político brasileiro, operando segundo o princípio *mutatis mutandis* (mudando o que deve ser mudado). Esta metamorfose se articula em três dimensões analíticas distintas, porém dialeticamente conectadas, estabelecendo uma nova configuração do poder.

A fragmentação atomizada do período anterior cede lugar a uma polarização estruturada em torno de grandes eixos ideológico-programáticos, estabelecendo uma *realpolitik* de novo tipo.

Na dimensão **sociológica**, a restrição do espaço político a um número menor de atores dotados de maior capacidade organizacional produz uma transformação qualitativa nas formas de mediação entre sociedade civil e sistema político, exigindo dos partidos níveis mais sofisticados de articulação programática e mobilização social.

VI. Os Paradoxos da Racionalização: Riscos à Pluralidade Democrática

Contudo, seria teoricamente ingênuo ignorar os riscos inerentes a esta metamorfose sistêmica, particularmente no que concerne à potencial erosão da diversidade representativa segundo o adágio *audiatur et altera pars* (que se ouça também a outra parte).

A redução de 6.000 a 8.000 candidaturas não representa meramente um ajuste quantitativo neutro, mas configura uma restrição substantiva do acesso ao campo político que pode comprometer a capacidade do sistema de expressar a complexidade sociológica da sociedade brasileira. Esta concentração do poder pode produzir um déficit de “inclusividade” — uma das duas dimensões fundamentais da democratização teorizada por Robert Dahl em *Polyarchy* (1971), ao lado da “contestação pública”.

O fenômeno da concentração partidária, embora funcionalmente racional, carrega consigo o risco de marginalização de segmentos sociais cujas demandas não encontram expressão adequada nos grandes blocos hegemônicos, violando potencialmente o princípio *suum cuique* (a cada um o que é seu).

Minorias étnicas, movimentos sociais emergentes, correntes ideológicas periféricas e lideranças regionais específicas podem ver-se progressivamente excluídas de um sistema que privilegia a articulação suprarregional e a coerência programática ampla. Este processo de “filtragem institucional” pode produzir aquilo que Giovanni Sartori caracterizou como “subrepresentação estrutural” — a incapacidade sistêmica de traduzir eleitoralmente a diversidade social efetiva, estabelecendo uma *démocratie sélective* (democracia seletiva).

A consequência potencial é a emergência de uma democracia formalmente plural, porém substantivamente restritiva, onde a eficiência governativa se conquistaria às custas da representatividade integral.

Considerações Prospectivas

O movimento de racionalização do sistema partidário brasileiro, inevitável sob as regras normativas vigentes, caminha para a consolidação de um arranjo institucional simultaneamente mais organizado e mais centralizado.

A disputa eleitoral futura será decidida predominantemente por blocos institucionalmente estruturados, dotados de coerência programática e capacidade de articulação suprarregional, em detrimento da miríade de candidaturas pontuais e regionalizadas que caracterizou o período de maior fragmentação.

Esta evolução, longe de representar um empobrecimento do pluralismo democrático, configura sua sofisticação qualitativa: menos atores, porém mais estruturados; menor diversidade quantitativa, porém maior densidade programática.

O desafio prospectivo residirá na capacidade do novo arranjo de manter a representatividade social sem comprometer a eficiência governativa — equilibrio que constituirá o teste decisivo da viabilidade desta metamorfose institucional.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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