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JURÍDICO DESCOMPLICADO
26 de Junho: o dia em que o Direito Internacional olha nos olhos da dor

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Analisando seis marcos decisivos, a jurisprudência internacional revela como o Direito enfrentou a tortura com decisões que moldaram a proteção da dignidade humana

Por Vinicius Miguel - quinta-feira, 26/06/2025 - 10h58

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Há apenas um problema filosófico verdadeiramente sério: o de saber se a vida vale a pena ser vivida. E para aqueles que sobreviveram à tortura, esta pergunta adquire uma dimensão que o direito tenta, penosamente, transformar em resposta.

A Solidão Universal de 26 de Junho

Existe uma solidão particular naqueles que foram tocados pela tortura. É uma solidão que transcende fronteiras, idiomas e épocas – uma experiência humana tão brutal que apenas a linguagem universal do direito consegue tentar abraçá-la. Quando a Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução 52/149 de 12 de dezembro de 1997, escolheu o 26 de junho como Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, não estava apenas criando mais uma data comemorativa. Estava reconhecendo que existe um sofrimento tão profundo que exige a mobilização de toda a humanidade organizada juridicamente.

A escolha desta data – que coincide com a entrada em vigor da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes em 26 de junho de 1987 – carrega em si uma ironia quase camusiana: celebramos a criação de normas para proibir algo que jamais deveria ter existido. É como se a humanidade precisasse se lembrar, anualmente, de que é humana.

O Absurdo Jurídico da Proibição

Há algo absurdo na necessidade de um tratado internacional para proibir a tortura. Que tipo de criatura precisa de um documento legal para entender que causar sofrimento extremo a outro ser humano é inaceitável? E, no entanto, foi precisamente essa necessidade que deu origem ao mais sofisticado regime jurídico internacional jamais criado para proteger a dignidade humana.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, nasceu das cinzas de um mundo que havia visto o que acontece quando a humanidade esquece de si mesma. Seu artigo 5º – ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante – é mais que uma norma jurídica. É um grito de reconhecimento: sim, somos capazes do pior, e por isso precisamos do melhor de nossas instituições para nos proteger de nós mesmos.

A Lenta Consciência de uma Norma Imperativa

O Direito Internacional caminhou lentamente até reconhecer que a proibição da tortura pertence àquele seleto grupo de normas que não admitem exceção – o jus cogens. É uma categoria jurídica estranha, quase mística: normas tão fundamentais que vinculam todos os Estados, querendo eles ou não, como se fossem leis naturais descobertas pela razão humana.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966 e em vigor desde 23 de março de 1976, deu um passo decisivo ao estabelecer em seu artigo 7º que mesmo em estados de emergência – quando a própria sobrevivência do Estado está em jogo – a proibição da tortura não pode ser suspensa.

Mas foi a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1984, que transformou esta intuição moral em arquitetura jurídica complexa. Seus artigos não são apenas normas; são confissões de nossa fragilidade e testamentos de nossa resistência.

O Espelho dos Sistemas Regionais: Jurisprudência da Dor

O Sistema Europeu e a Geometria do Sofrimento

O Sistema Europeu de Direitos Humanos enfrentou o dilema de definir onde termina o tratamento degradante e começa a tortura no emblemático caso Irlanda vs. Reino Unido, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos em 18 de janeiro de 1978.

O caso envolveu cinco técnicas de interrogatório utilizadas pelas forças britânicas na Irlanda do Norte: privação de sono, privação de alimento e água, exposição a ruídos constantes, permanência em pé contra a parede por horas e colocação de capuz sobre a cabeça.

A Corte, por 13 votos a 4, decidiu que essas práticas constituíam tratamento desumano e degradante, mas não tortura no sentido estrito da Convenção Europeia. Esta distinção, aparentemente técnica, revelou-se fundamental para o desenvolvimento do direito internacional: estabeleceu que existe uma gradação no sofrimento juridicamente relevante, mas que mesmo os níveis menores são absolutamente proibidos.

Posteriormente, no caso Aksoy vs. Turquia, julgado em 18 de dezembro de 1996, a mesma Corte reafirmou o caráter absoluto da proibição da tortura. Zeki Aksoy, detido em estado de emergência no sudeste da Turquia, foi submetido à técnica conhecida como crucificação palestina – suspenso pelos braços amarrados atrás das costas. A Corte não apenas condenou a Turquia, mas estabeleceu que nenhuma circunstância, por mais grave que seja, justifica a tortura.

O Sistema Interamericano: A Arqueologia da Verdade

O Sistema Interamericano, nascido em um continente marcado por ditaduras e desaparecimentos, desenvolveu uma jurisprudência obsessiva sobre o dever de investigar. No caso paradigmático Velásquez Rodríguez vs. Honduras, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 29 de julho de 1988, a Corte estabeleceu que o Estado deve investigar ex officio toda alegação de tortura.

Manfredo Velásquez, estudante universitário, foi detido em 12 de setembro de 1981 por membros das forças armadas hondurenhas e nunca mais foi visto. Sua irmã, Zenaida Velásquez, e outros familiares recorreram à Corte Interamericana. O tribunal não apenas condenou Honduras pela violação dos direitos humanos, mas estabeleceu princípios fundamentais sobre a obrigação estatal de investigar, processar e punir os responsáveis por violações de direitos humanos.

A Corte determinou que o Estado tem o dever de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas através das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Esta jurisprudência cruel em sua compaixão obriga o Estado a revirar feridas que talvez preferissem cicatrizar em silêncio.

A Revolução Silenciosa do Protocolo Facultativo

Em 18 de dezembro de 2002, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, que entrou em vigor em 22 de junho de 2006. Algo extraordinário aconteceu: o Direito Internacional admitiu que punir não bastava. O Protocolo criou um sistema baseado numa ideia simples e revolucionária – é melhor prevenir que reparar.

O Protocolo estabeleceu um sistema duplo de visitas preventivas: o Subcomitê para Prevenção da Tortura das Nações Unidas e os Mecanismos Nacionais de Prevenção em cada Estado-parte. Há algo tocante na criação destes mecanismos: são pessoas comuns – médicos, advogados, assistentes sociais – que receberam a missão de visitar lugares onde outros seres humanos estão custodiados pelo Estado.

É uma profissão estranha, quase sisífica: visitar sistematicamente os lugares onde a dignidade humana está mais vulnerável, sabendo que nunca será possível eliminar completamente o risco. Mas continuam visitando, relatando, recomendando, como se fossem guardiões de algo sagrado que não conseguimos definir, mas sabemos que não podemos perder.

As Regras de Mandela: A Dignidade Codificada

Em 17 de dezembro de 2015, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Resolução 70/175, que aprovou as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos, conhecidas como Regras de Mandela. Esta revisão das regras originais de 1955 representou um marco na prevenção da tortura em contextos de privação de liberdade.

As Regras de Mandela estabelecem padrões detalhados sobre acomodação, higiene pessoal, vestuário, alimentação, exercícios, assistência médica, disciplina, meios de coerção, informação e direito de queixa dos reclusos. Mais que diretrizes técnicas, constituem uma filosofia sobre o que significa manter a dignidade humana mesmo em situações de privação de liberdade.

A Regra 1 estabelece o princípio fundamental: todos os reclusos devem ser tratados com o respeito devido à sua dignidade e valor inerentes como seres humanos. Parece óbvio, mas esta simplicidade esconde décadas de luta para estabelecer que a privação de liberdade não implica privação de humanidade.

As Regras de Mandela conectam-se intimamente com a prevenção da tortura ao estabelecer que condições inadequadas de detenção podem, em si mesmas, constituir tratamento cruel, desumano ou degradante. A superlotação extrema, a falta de saneamento básico, a ausência de assistência médica, a alimentação inadequada – todos esses elementos, isolados ou em conjunto, podem cruzar o limiar que separa a privação legítima de liberdade da tortura.

A Geometria Complexa das Obrigações

O Direito Internacional criou uma geometria precisa para mapear as obrigações estatais sobre tortura, codificada no artigo 2º da Convenção contra a Tortura. Quatro verbos definem esta arquitetura: respeitar, proteger, garantir, reparar. Cada um carrega o peso de décadas de reflexão sobre o que significa ser responsável pela dignidade de outro ser humano.

A Jurisdição Universal: Quando o Mundo se Torna Tribunal

O princípio aut dedere aut judicare – extraditar ou julgar – codificado nos artigos 5º a 7º da Convenção contra a Tortura, representa uma das mais audaciosas invenções do Direito Internacional. Significa que um torturador não tem onde se esconder no planeta. Qualquer Estado pode e deve julgá-lo, independentemente de onde o crime foi cometido, da nacionalidade do perpetrador ou da vítima.

É uma ideia quase utópica: transformar cada tribunal nacional em tribunal da humanidade. Como se dissesse: a tortura ofende não apenas a vítima, mas toda a espécie humana. Por isso, toda a espécie humana tem direito de julgá-la.

O caso mais emblemático desta jurisdição universal foi a detenção do General Augusto Pinochet em Londres, em 16 de outubro de 1998, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón. Embora Pinochet tenha finalmente retornado ao Chile por razões médicas, o caso estabeleceu precedente fundamental: chefes de Estado não gozam de imunidade absoluta por crimes contra a humanidade, incluindo tortura.

A Jurisprudência como Arqueologia da Dor

A evolução jurisprudencial sobre tortura lê-se como uma arqueologia da capacidade humana para o sofrimento. Cada caso julgado pelos tribunais internacionais revela novas camadas de crueldade, mas também novas possibilidades de resistência jurídica.

O Reconhecimento da Violência Sexual como Tortura

Quando os tribunais reconheceram que o estupro pode constituir tortura, como no caso Prosecutor vs. Jean-Paul Akayesu, julgado pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda em 2 de setembro de 1998, não estavam apenas expandindo um conceito legal. Estavam dizendo que existe uma violência específica dirigida contra a sexualidade que merece a reprovação mais severa do Direito Internacional.

A Tortura Psicológica

O reconhecimento da tortura psicológica representa uma das evoluções mais significativas da jurisprudência internacional. No caso Loayza Tamayo vs. Peru, julgado pela Corte Interamericana em 17 de setembro de 1997, a Corte reconheceu que ameaças e intimidação psicológica podem constituir tortura. É um reconhecimento perturbador da sofisticação de nossa crueldade: admite que se pode destruir uma pessoa sem tocar em seu corpo.

O Protocolo de Istambul: Manual de Resistência Científica

O Manual para Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, conhecido como Protocolo de Istambul, foi apresentado ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em 9 de agosto de 1999. É um documento técnico sobre como investigar alegações de tortura, mas é também algo mais: um manual de resistência científica contra a mentira.

O Protocolo ensina médicos a ler nos corpos as histórias que os perpetradores querem apagar. Ensina psicólogos a decifrar os silêncios que as vítimas não conseguem quebrar. Estabelece padrões para documentação de evidências físicas e psicológicas de tortura, criando uma linguagem científica universal para traduzir o sofrimento em prova jurídica.

É um documento tocante em sua precisão técnica. Como se dissesse: não podemos impedir que torturem, mas podemos tornar impossível que neguem ter torturado.

Os Novos Rostos da Antiga Barbárie

O Direito Internacional enfrenta hoje formas de tortura que seus criadores não imaginaram. A crescente digitalização da vida humana criou novas possibilidades de violação da dignidade. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura, em seu relatório de 2020, alertou para o uso de tecnologias de vigilância como forma de tortura psicológica.

São desafios que revelam algo perturbador: nossa capacidade de criar novas formas de crueldade evolui mais rapidamente que nossa capacidade de criar proteções jurídicas contra elas.

A Tensão Eterna: Segurança vs. Humanidade

O século XXI trouxe uma tensão que os criadores da Convenção contra a Tortura não previram completamente: o conflito entre medidas antiterroristas e proibição absoluta da tortura. Alguns Estados argumentam que certas circunstâncias extraordinárias podem justificar métodos extraordinários.

É um argumento sedutor e perigoso. Sedutor porque apela ao nosso instinto de sobrevivência. Perigoso porque, se aceito, torna a proibição da tortura relativa, condicional, negociável.

O Comitê contra a Tortura, em suas Observações Gerais, mantém posição intransigente: a proibição é absoluta. Não há circunstância que justifique a tortura. É uma posição quase heroica em sua intransigência.

26 de Junho: O Retorno Anual à Consciência

Todos os anos, em 26 de junho, o mundo para para lembrar que a tortura existe. É um dia estranho – celebramos nossa humanidade reconhecendo nossa barbárie. Lembramos das vítimas admitindo que não conseguimos protegê-las completamente.

Mas talvez seja precisamente nesta honestidade que reside a grandeza do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Não promete a eliminação do mal. Promete apenas que não vamos nos conformar com ele.

O Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura é, no fundo, um ato de resistência. Resistência contra o esquecimento, contra a normalização, contra a resignação. É nossa maneira de dizer, coletivamente, uma vez por ano: não, isto não é normal. Não, não vamos nos acostumar. Não, não vamos parar de tentar ser melhores do que somos.

Conclusão: A Sisífica Dignidade do Direito

Albert Camus escreveu sobre Sísifo, condenado a empurrar uma pedra montanha acima por toda a eternidade, sabendo que ela sempre rolará de volta. Mas Camus via em Sísifo um herói, porque mesmo sabendo da inutilidade de sua tarefa, ele continuava.

O Direito Internacional sobre tortura tem algo de sisífico. Sabe que nunca eliminará completamente a tortura. Sabe que sempre haverá Estados que violarão suas obrigações, perpetradores que escaparão à justiça, vítimas que não receberão reparação adequada.

Mas continua. Continua criando normas, aperfeiçoando mecanismos, expandindo proteções. Continua porque entendeu algo fundamental: a dignidade humana não está em nossa capacidade de ser perfeitos, mas em nossa recusa a aceitar a imperfeição como inevitável.

Todo 26 de junho, quando o mundo se lembra das vítimas de tortura, não está apenas prestando homenagem aos que sofreram. Está reafirmando uma escolha: a escolha de acreditar que podemos ser melhores do que somos, mesmo sabendo que nunca seremos perfeitos.

E talvez seja precisamente nesta escolha impossível e necessária que reside toda a beleza trágica do Direito Internacional dos Direitos Humanos.


Casos jurisprudenciais mencionados:

1978
Ireland v. United Kingdom (18 de janeiro de 1978)
Tribunal: Corte Europeia de Direitos Humanos
Número do Caso: Application no. 5310/71
Relevância: Estabeleceu a distinção entre tortura e tratamento desumano ou degradante; definiu que cinco técnicas de interrogatório (privação de sono, privação de alimento e água, exposição a ruídos, permanência em pé, uso de capuz) constituíam tratamento desumano mas não tortura stricto sensu.

1988
Caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras (29 de julho de 1988)
Tribunal: Corte Interamericana de Direitos Humanos
Série: C, n. 4
Relevância: Estabeleceu as obrigações estatais de investigar ex officio alegações de tortura; definiu o dever do Estado de organizar todo o aparato governamental para assegurar direitos humanos; caso paradigmático sobre desaparecimentos forçados.

1996
Aksoy v. Turkey (18 de dezembro de 1996)
Tribunal: Corte Europeia de Direitos Humanos
Número do Caso: Application no. 21987/93
Relevância: Reafirmou o caráter absoluto da proibição da tortura; condenou a técnica da “crucificação palestina”; estabeleceu que nenhuma circunstância justifica tortura.

1997
Caso Loayza Tamayo vs. Peru (17 de setembro de 1997)
Tribunal: Corte Interamericana de Direitos Humanos
Série: C, n. 33
Relevância: Reconheceu a tortura psicológica como forma de tortura; estabeleceu que ameaças e intimidação psicológica podem constituir tortura mesmo sem violência física.

1998
Prosecutor v. Jean-Paul Akayesu (2 de setembro de 1998)
Tribunal: Tribunal Penal Internacional para Ruanda
Número do Caso: ICTR-96-4-T
Relevância: Primeiro caso a reconhecer o estupro como forma de tortura e crime contra a humanidade; expandiu o conceito legal de tortura para incluir violência sexual sistemática.

1998
Caso Pinochet (16 de outubro de 1998)
Contexto: Detenção em Londres a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón
Relevância: Estabeleceu precedente sobre jurisdição universal para crimes de tortura; demonstrou que chefes de Estado não gozam de imunidade absoluta por crimes contra a humanidade; marco da justiça transnacional.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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