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JURÍDICO DESCOMPLICADO
Quando o Louvre foi roubado, a Mona Lisa levada e Pablo Picasso se tornou suspeito!

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O roubo que transformou a Mona Lisa em ícone mundial e expôs o nacionalismo, as falhas jurídicas e o impacto cultural de um crime singular na história da arte

Por Vinicius Miguel - terça-feira, 21/10/2025 - 10h21

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Na coluna desta terça-feira, 21, o advogado Vinicius Valentin Raduan Miguel abordou o célebre roubo da Mona Lisa, ocorrido em 1911, detalhando o perfil do autor Vincenzo Peruggia, o planejamento e a execução do crime, a investigação que chegou a envolver Picasso e Apollinaire, o julgamento realizado na Itália e os efeitos jurídicos e culturais do caso. O texto analisa como o furto transformou a pintura em um símbolo mundial e gerou reflexões duradouras sobre segurança museológica, soberania nacional e crimes contra o patrimônio cultural.

O Roubo da Mona Lisa (1911)

I. O Crime e Suas Circunstâncias

1.1 Perfil do Autor

Vincenzo Peruggia nasceu em 8 de outubro de 1881 em Dumenza, uma pequena vila nos Alpes italianos, próxima à fronteira suíça.

Após emigrar para Paris em 1908, obteve trabalho no Museu do Louvre, onde exerceu funções de limpeza, emolduramento de pinturas e construção de estruturas protetoras para obras de arte.

Sua experiência profissional incluiu especificamente a participação na construção da caixa protetora da Mona Lisa, o que lhe proporcionou conhecimento detalhado dos mecanismos de segurança da obra.

1.2 Modus Operandi

Na segunda-feira, 21 de agosto de 1911, por volta das 7h, Peruggia ingressou no Museu do Louvre durante o dia de fechamento para manutenção, portando avental branco característico dos funcionários.

Segundo seu depoimento prestado em interrogatório em Florença após sua prisão em 12 de dezembro de 1913, ele se aproveitou do horário de funcionamento reduzido e da baixa vigilância típica das férias de verão.

Quando o Salon Carré ficou deserto, Peruggia removeu a pintura dos quatro pinos de ferro que a fixavam à parede, transportou-a para uma escada de serviço próxima, retirou a moldura e a caixa protetora, e embrulhou a obra em seu avental de trabalho.

Ao tentar deixar o museu, ficou momentaneamente retido em uma porta de serviço trancada, sendo liberado por um encanador que o confundiu com funcionário regular.

1.3 Descoberta do Delito

O desaparecimento somente foi constatado na terça-feira, 22 de agosto de 1911, quando o pintor Louis Béroud compareceu ao museu para realizar cópia da obra. A ausência inicial não despertou suspeitas imediatas, pois era procedimento comum a remoção temporária de pinturas para conservação ou documentação fotográfica.

II. A Investigação Criminal

2.1 Estrutura da Investigação

As autoridades francesas mobilizaram aproximadamente 60 agentes policiais para o caso. A Gendarmerie Nacional conduziu interrogatórios com todo o corpo permanente do museu e, posteriormente, estendeu as investigações a trabalhadores temporários, incluindo pedreiros, decoradores e prestadores de serviços específicos.

2.2 Questões Probatórias

Peruggia havia deixado impressão digital no vidro protetor da pintura. Seus registros datiloscópicos constavam dos arquivos policiais devido a prisões anteriores.

Contudo, ocorreu falha procedimental significativa: as autoridades colheram apenas impressões digitais da mão direita dos funcionários do museu, enquanto as impressões no local do crime eram da mão esquerda de Peruggia.

Durante setembro de 1911, oficiais visitaram o apartamento de Peruggia e o interrogaram em duas ocasiões, sem considerá-lo suspeito prioritário.

O acusado permaneceu com a obra oculta em seu apartamento parisiense por aproximadamente 28 meses.

2.3 O Caso das Estátuas Ibéricas: Picasso e Apollinaire

A investigação tomou curso relevante quando se descobriu conexão com subtrações anteriores ocorridas no Louvre. Em 1907, Géry Pieret, secretário do poeta Guillaume Apollinaire, havia subtraído pelo menos duas esculturas ibéricas datadas dos séculos III ou IV a.C. do acervo do museu, vendendo-as a Pablo Picasso por 50 francos cada. Em 1911, Pieret realizou nova subtração, depositando uma peça adicional na residência de Apollinaire.

Ao tomarem conhecimento do envolvimento com objetos roubados, Picasso e Apollinaire cogitaram descartar as estátuas no rio Sena, porém não executaram o plano. Apollinaire compareceu ao jornal Paris-Journal para devolver os artefatos, solicitando anonimato que não foi preservado.

Aspectos Jurídicos do Caso Conexo

Guillaume Apollinaire foi detido por seis dias para investigações.

Pablo Picasso foi conduzido para prestar depoimento, tendo inicialmente negado os fatos e até mesmo conhecer o poeta. Ambos foram interrogados como suspeitos potenciais do furto da Mona Lisa.

O magistrado responsável concluiu que, embora a aquisição das estátuas constituísse receptação de objetos produto de crime, não havia elementos probatórios conectando os artistas ao desaparecimento da Mona Lisa.

Não houve condenação criminal de Picasso ou Apollinaire. O caso foi arquivado após a devolução das estátuas, sem imposição de sanções penais aos envolvidos, caracterizando uma forma de arquivamento mediante reparação do dano.

III. A Recuperação da Obra

Em novembro de 1913, após ver anúncios de antiquários em jornal italiano, Peruggia transportou a obra para a Itália via ferroviária. Em 29 de novembro de 1913, utilizando o pseudônimo “Leonardo V.”, remeteu correspondência a Alfredo Geri, comerciante de antiguidades em Florença, oferecendo a restituição da pintura mediante pagamento de 500.000 liras e garantia de não-devolução à França.

Em 11 de dezembro de 1913, Peruggia compareceu ao Hotel Tripoli-Italia em Florença, onde apresentou a obra a Geri e Giovanni Poggi, diretor da Galeria Uffizi. Poggi confirmou a autenticidade, solicitou custódia temporária para “verificação” e acionou as autoridades. Peruggia foi preso pelos carabinieri em 12 de dezembro de 1913.

IV. Questões de Direito Internacional

4.1 Competência Jurisdicional e Extradição

A França formalmente solicitou a extradição de Peruggia às autoridades italianas. O governo italiano, contudo, recusou o pedido extradicional, optando por exercer jurisdição própria sobre o caso.

Esta decisão fundamentou-se em diversos fatores:

1. A prisão ocorreu em território italiano, onde Peruggia praticou atos executórios de tentativa de alienação de bem produto de crime
2. Peruggia era cidadão italiano
3. Significativa parcela da população italiana considerava Peruggia um “patriota”4. Exercício do direito de julgar seus nacionais em território próprio

A recusa de extradição estabeleceu precedente relevante em matéria de crimes contra patrimônio cultural, demonstrando como fatores culturais e nacionalistas podem influenciar decisões de cooperação jurídica internacional.

4.2 Exibição da Obra Antes da Devolução

Antes da restituição à França, a Mona Lisa foi exibida em diversos museus italianos: Galleria degli Uffizi (Florença), Galleria Borghese (Roma) e Pinacoteca di Brera (Milão), entre 29 e 30 de dezembro de 1913. Dezenas de milhares de cidadãos italianos visitaram as exposições, caracterizando verdadeira celebração nacional da “recuperação” da obra.

4.3 Restituição à França

A obra foi oficialmente restituída à França em 4 de janeiro de 1914, chegando a Paris em vagão ferroviário especial. O Presidente da República Francesa e membros do governo compareceram ao Louvre para receber a pintura, que foi reinstalada no Salon Carré.

V. O Processo Judicial

5.1 Jurisdição e Foro Competente

O julgamento realizou-se em Florença, Itália, nos dias 4 e 5 de junho de 1914, no Palazzo Vecchio.

A competência territorial italiana baseou-se no local da prisão e dos atos executórios de tentativa de comercialização da obra roubada.

5.2 Classificação do Crime

Peruggia foi processado por “furto aggravato” (furto qualificado) segundo a legislação penal italiana. As qualificadoras reconhecidas incluíam:

– Subtração de bem em local público de significativo valor cultural
– Abuso de confiança e conhecimento privilegiado do sistema de segurança
– Valor inestimável do bem subtraído
– Utilização de ardil (disfarce como funcionário)

5.3 Estratégia Defensiva

A defesa sustentou duas linhas argumentativas principais:

Alegou-se que Peruggia acreditava erroneamente que Napoleão Bonaparte havia subtraído a obra da Itália durante suas campanhas militares, e que sua ação constituía restituição patriótica. Esta alegação era historicamente incorreta, pois Leonardo da Vinci completou a obra na França e o Rei Francisco I a adquiriu legitimamente em 1518.

A defesa postulou diminuição da capacidade mental do acusado. O psiquiatra forense Paolo Amaldi, nomeado em 24 de maio de 1914, conduziu avaliação mediante teste cognitivo. Ao ser questionado sobre enigma envolvendo caça de pássaros em árvore, Peruggia forneceu resposta considerada indicativa de capacidade intelectual reduzida, levando o perito a classificá-lo como “imbecile” em laudo técnico.

5.4 Sentença de Primeiro Grau

O tribunal de primeira instância, considerando:
– As circunstâncias atenuantes do suposto patriotismo
– O laudo psiquiátrico indicando limitações cognitivas
– A significativa pressão da opinião pública italiana
– A ausência de antecedentes criminais graves

Condenou Peruggia a um ano e 15 dias de reclusão por furto qualificado.

5.5 Recurso de Apelação

Em 29 de julho de 1914, o tribunal de apelação reduziu a pena para sete meses e oito dias de reclusão. Considerando o período de custódia cautelar cumprido desde a prisão em dezembro de 1913, Peruggia foi imediatamente liberado, tendo a prisão preventiva já superado o quantum da pena definitiva.

5.6 Análise da Proporcionalidade da Pena

A sentença é notavelmente branda considerando:
– O valor histórico e cultural inestimável da obra
– A repercussão internacional do delito
– A premeditação evidente
– O período de dois anos em que manteve a obra oculta

A benevolência judicial reflete claramente o impacto de fatores extrajurídicos: o sentimento nacionalista italiano que via Peruggia como restaurador de patrimônio nacional, ainda que baseado em premissa histórica falsa.

VI. Aspectos Financeiros e Recompensas

6.1 Ausência de Pagamento Italiano à França

Não houve qualquer pagamento, compensação ou doação do governo italiano ao governo francês pela devolução da obra.

A restituição foi efetuada como cumprimento de obrigação decorrente do reconhecimento da propriedade francesa legítima sobre o bem.

6.2 Recompensa Francesa a Alfredo Geri

Ao contrário, foi o governo francês quem efetuou pagamentos:

Alfredo Geri, o comerciante de antiguidades que facilitou a recuperação da obra, recebeu uma recompensa pecuniária de 25.000 francos franceses em janeiro de 1914.

Ainda, recebeu uma condecoração com a Roseta da Legião de Honra, uma das mais prestigiadas distinções francesas.

Esta recompensa foi paga independentemente das ofertas feitas durante a investigação (25.000 francos pelo Louvre, 40.000 francos pela revista L’Illustration, 5.000 francos pelo jornal Le Matin).

VII. Vida Posterior e Desfecho

Após a liberação, Peruggia retornou a Dumenza, sendo recebido por alguns como herói local. Serviu no exército italiano durante a Primeira Guerra Mundial, sendo capturado e mantido prisioneiro pelas forças austríacas após a Batalha de Caporetto.

Em 1921, Peruggia contraiu matrimônio com Annunciata Rossi e, surpreendentemente, retornou à França. Para contornar restrições devido à condenação criminal, utilizou seu nome intermediário “Pietro” nos documentos de imigração, estabelecendo-se em Saint-Maur-des-Fossés, subúrbio parisiense, onde abriu estabelecimento comercial de ferragens.

Teve uma filha, Celestina (1924-2011), que recebeu o apelido de “Piccola Gioconda” (Pequena Mona Lisa) na comunidade local. Vincenzo Peruggia faleceu de ataque cardíaco em 8 de outubro de 1925, exatamente no seu 44º aniversário, sendo sepultado no Cemitério Condé de Saint-Maur-des-Fossés.

Seus restos mortais foram posteriormente transferidos para o ossário do cemitério na década de 1950.

VIII. Impacto Jurídico e Cultural

8.1 Transformação do Status da Obra

O furto transformou a Mona Lisa de pintura renascentista respeitada em fenômeno cultural global.

Durante os 28 meses de desaparecimento, sua imagem foi reproduzida massivamente pela imprensa mundial, estabelecendo reconhecimento universal que perdura até hoje. Estima-se que aproximadamente 10 milhões de visitantes anuais comparecem ao Louvre especificamente para visualizar a obra.

8.2 Aprimoramentos em Segurança Museológica

O incidente expôs graves deficiências nos sistemas de segurança de museus europeus, catalisando reformas significativas em:
– Sistemas de vigilância e monitoramento
– Procedimentos de controle de acesso de funcionários
– Protocolos de inventário e verificação periódica de acervo
– Estruturas físicas de proteção (vidros de segurança, alarmes)

IX. Considerações Finais

O caso Vincenzo Peruggia versus Estado Francês/Estado Italiano permanecerá como paradigma de complexidade jurídica em matéria de crimes contra patrimônio cultural.

Demonstra como elementos de direito penal internacional, soberania estatal, sentimento nacionalista e valor cultural podem convergir em decisão judicial que, sob perspectiva estritamente legal, apresenta notória desproporcionalidade entre a gravidade objetiva do delito e a sanção efetivamente imposta.

A recusa italiana em extraditar seu nacional, optando por julgamento doméstico com resultado manifestamente benevolente, ilustra as tensões entre cooperação internacional e afirmação de soberania em contexto de forte carga simbólica cultural.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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