Advogado especialista em direitos humanos fala sobre o Dia Internacional de Nelson Mandela e seu significado no mundo jurídico
Vinicius Valentin Raduan Miguel, advogado e doutor em Ciência Política
Cela 466/64, seção B, Robben Island. Dois metros quadrados de concreto frio, um balde sanitário, uma esteira no chão. Durante dezoito anos, esta foi a realidade de Nelson Rolihlahla Mandela no que os próprios guardas chamavam de “universidade da resistência”.
As pedras calcárias que ele quebrava nas pedreiras da ilha-prisão, sob o sol escaldante, jamais conseguiram quebrar sua convicção de que a dignidade humana permanece intacta mesmo atrás das grades.
Em 2015, as Nações Unidas tomaram uma decisão histórica ao rebatizar as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos como Regras de Mandela, através da Resolução A/RES/70/175.
Tratou-se do reconhecimento de que aquele homem, privado de liberdade por 27 anos, havia compreendido melhor que muitos juristas a essência do que significa preservar a humanidade no cárcere.
“A verdadeira medida da nossa personalidade é como tratamos os nossos semelhantes”, registrou Mandela em suas memórias.
“Ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata os seus cidadãos mais ilustres, mas sim pelos mais humildes.”
Essas palavras, escritas após décadas de reflexão sobre o sistema penitenciário, sintetizam o espírito das 122 disposições que hoje compõem as Regras de Mandela.
As estratégias políticas desenvolvidas por Mandela durante e após seu encarceramento oferecem lições fundamentais para compreender como transformar sistemas opressivos em estruturas de justiça.
Durante os 27 anos de prisão, Mandela sobreviveu ao cárcere e o transformou em laboratório de construção democrática.
Suas correspondências com autoridades prisionais, hoje preservadas nos Arquivos Mandela, revelam uma metodologia política refinada: a substituição gradual do confronto pela negociação, sem jamais abdicar dos princípios fundamentais.
A primeira estratégia mandeliana consistia na humanização sistemática do adversário. Nos anos finais em Robben Island, Mandela aprendeu africâner, idioma de seus carcereiros, para estabelecer pontes comunicativas que transcendessem barreiras linguísticas e culturais.
Quando transferido para a Prisão Pollsmoor em 1982, ele iniciou conversas secretas com o governo do apartheid, demonstrando que a verdadeira liderança política não teme o diálogo mesmo com opositores históricos. Essa abordagem, que seus próprios companheiros do ANC inicialmente criticaram como concessão inaceitável, provou-se fundamental para evitar uma guerra civil que poderia ter custado milhões de vidas.
A segunda estratégia residia na construção paciente de consensos através da exemplaridade pessoal. Mandela transformou sua conduta prisional em declaração política viva.
Recusava-se a aceitar privilégios que não fossem estendidos aos demais presos políticos, dividia as rações alimentares com companheiros mais jovens e organizava sessões educativas clandestinas que fortaleciam a resistência coletiva.
Essa liderança pelo exemplo criou autoridade moral que transcendeu os muros da prisão, influenciando a opinião pública internacional e fortalecendo o movimento anti-apartheid global.
A terceira estratégia – talvez a mais relevante para o sistema de justiça criminal contemporâneo – baseava-se na compreensão de que a transformação sustentável exige institucionalização de direitos, não apenas mudanças de governo.
Mandela percebeu que derrotar o apartheid seria inútil se as estruturas de opressão fossem simplesmente transferidas para novos operadores.
Por isso, durante as negociações que precederam sua libertação em 1990, insistiu na criação de mecanismos constitucionais permanentes de proteção aos direitos humanos, incluindo dispositivos específicos sobre condições carcerárias e tratamento de presos.
Essa visão estratégica explica por que Mandela, mesmo após se tornar presidente, manteve-se vigilante quanto às condições prisionais sul-africanas.
Ele compreendeu que uma democracia genuína não pode conviver com a desumanização sistemática de qualquer segmento populacional, incluindo aqueles que violaram a lei.
AS ÚLTIMAS OPINIÕES
Suas reformas penitenciárias na década de 1990 buscaram implementar os mesmos princípios de dignidade humana que ele havia defendido como prisioneiro, estabelecendo precedentes que influenciariam diretamente a formulação das Regras de Mandela duas décadas depois.
O contraste com realidades contemporâneas é gritante. Enquanto a Noruega registra taxa de reincidência de apenas 20% e investe aproximadamente 93 mil dólares anuais por preso em programas de ressocialização, o Brasil enfrenta uma crise sem precedentes.
Nosso país ostenta a terceira maior população carcerária mundial – mais de 830 mil pessoas presas, segundo dados atualizados do Conselho Nacional de Justiça –, com déficit superior a 200 mil vagas e taxa de reincidência que beira os 70%. A Alemanha, por sua vez, conseguiu reduzir sua população carcerária em 25% nos últimos quinze anos através da implementação rigorosa de alternativas penais e do investimento em programas educacionais e profissionalizantes dentro das prisões.
As Regras de Mandela não constituem mera declaração de princípios. Elas estabelecem obrigações jurídicas precisas: respeito absoluto à dignidade inerente da pessoa humana (Regra 1), acesso a serviços de saúde equivalentes aos oferecidos fora das prisões (Regras 24-35), garantia de contato com o mundo exterior e direito à visita familiar (Regras 36-46), além da proibição expressa do uso prolongado de solitária ou confinamento indefinido (Regra 43). Cada uma dessas disposições foi construída sobre evidências documentadas de violações sistemáticas: superlotação, tortura, negligência médica, isolamento abusivo, discriminação racial, sexual e religiosa.
No ordenamento jurídico brasileiro, essas regras possuem força normativa vinculante como normas internacionais de direitos humanos, conforme o artigo 5º, §2º, da Constituição Federal.
Contudo, a realidade nas prisões brasileiras continua distante desses padrões. Casos documentados pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura revelam situações que violam frontalmente as Regras de Mandela: presos mantidos em containers metálicos sob temperaturas superiores a 50°C, celas com capacidade para oito pessoas abrigando mais de trinta, ausência completa de assistência médica por meses consecutivos, e o uso sistemático do isolamento disciplinar por períodos superiores a quinze dias consecutivos – prática expressamente vedada pelas normas internacionais por constituir tortura.
O Supremo Tribunal Federal não permaneceu indiferente a essa realidade. Ao reconhecer o “estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional brasileiro na ADPF 347, a Corte constatou que o encarceramento em massa, combinado com a violação reiterada de direitos básicos, configura omissão estrutural do Estado brasileiro.
O diagnóstico é um golpe seco: trata-se de falha sistêmica que demanda intervenção urgente e coordenada dos três poderes.
A transformação desse cenário exige medidas concretas e mensuráveis. Primeiro, o estabelecimento de marcos temporais específicos para redução do déficit carcerário em 30% nos próximos cinco anos, priorizando a implementação de alternativas penais para crimes não violentos.
Segundo, a criação obrigatória de mecanismos independentes de monitoramento em todas as unidades prisionais, com relatórios públicos trimestrais sobre condições de encarceramento.
Terceiro, a implementação de indicadores nacionais de qualidade prisional, incluindo taxa de ocupação, tempo médio de permanência, acesso à saúde e programas educacionais.
Quarto, o investimento compulsório de pelo menos 2% do orçamento da segurança pública em programas de ressocialização e capacitação profissional.
A lição de Mandela permanece atual e desconfortável: o grau de civilidade de uma sociedade se mede pelo modo como trata seus presos. Essa verdade obriga cada cidadão brasileiro – especialmente aqueles que ocupam posições de liderança no sistema de justiça – a questionar se nossa democracia está à altura de seus próprios princípios constitucionais.
As Regras de Mandela não são aspirações utópicas; são padrões mínimos de humanidade que um Estado de Direito deve assegurar. Implementá-las não é questão de benevolência política, mas de obrigação civilizatória inadiável.
Vinicius Valentin Raduan Miguel é advogado, professor universitário e doutor em Ciência Política pela UFRGS
REFERÊNCIAS
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Sistema Carcerário em Números. Brasília: CNJ, 2024. Disponível em: [https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/](https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/). Acesso em: 15 jul. 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 Distrito Federal. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 9 de setembro de 2015. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, n. 031, 19 fev. 2016.
BRASIL. Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório Anual 2022-2023. Brasília: MNPCT, 2023.
MANDELA, Nelson. Longa Caminhada até a Liberdade: autobiografia. Tradução de Maria Georgina Segurado. São Paulo: Siciliano, 1995.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Assembleia Geral. Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras de Mandela). Resolução A/RES/70/175, de 17 de dezembro de 2015. Nova York: ONU, 2015.
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WALMSLEY, Roy. World Prison Population List. 13th edition. London: Institute for Crime & Justice Policy Research, 2022.
