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COLUNA DO MONTEZUMA
Ditadura deu cadeia a militar que governou Rondônia duas vezes, operando milagres

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Militar paraquedista e duas vezes governador do antigo Território Federal do Guaporé, Abelardo Alvarenga Mafra enfrentou perseguição política após o golpe de 1964, foi preso por 52 dias e teve a carreira interrompida

Por Montezuma Cruz - sábado, 18/10/2025 - 09h20

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A história do tenente-coronel paraquedista Abelardo e Alvarenga Mafra, ex-governador do extinto Território Federal do Guaporé não aparece em livros, tampouco é conhecida no Estado de Rondônia. Até há pouco tempo estava oculta*. Apoiar seringueiros, indígenas isolados e a incipiente mineração sem dispor de dinheiro algum foi, sem dúvida, o grande feito desse militar visionário filiado ao Partido Trabalhista Nacional (PTN). Um mito de verdade.

As fotos deste artigo são do Museu da Memória Rondoniense e Arquivo Nacional.

Em 2019 eu pesquisava a respeito de antigos governadores territoriais, quando me deparei com a história de um homem dedicado e injustiçado por golpistas de 1964.

Terceiro e nono governador dos extintos territórios (Guaporé e Rondônia), Mafra viveu o começo do conturbado período de troca de governadores entre 1961 e 1964, ainda com a economia sustentada pelo extrativismo. Exerceu o cargo de 18 de março de 1961 a 13 de setembro daquele ano – quase seis meses.

Voltaria pelo Partido Social Democrático (PSD) para outro meteórico governo de três meses, de 27 de janeiro de 1964 a 24 de abril daquele ano. Quando assumiu o cargo, Rondônia tinha apenas um deputado federal, Renato Clímaco Borralho de Medeiros (PSP).

Sem justificativa inteligente, o Conselho de Segurança Nacional impediu Abelardo Mafra de criar uma companhia mista de desenvolvimento constituída por garimpeiros de cassiterita, empresas privadas e órgãos governamentais.

A disputa de poder entre cúpulas militares é antiga no Brasil, vem desde o início da República. Analisando o controvertido período ditatorial, vê-se que o projeto de Mafra para a cassiterita foi cumprido menos de duas décadas depois por outro paraquedista, o coronel Jorge Teixeira de Oliveira, ao criar em seu governo a Companhia de Mineração de Rondônia (CMR). Essa empresa até ensaiou o controle da produção de ouro.

Duas vezes governador territorial, na última o tenente-coronel Mafra deixou o cargo em setembro de 1964: demitido por telegrama transmitido ao Palácio Presidente Vargas, ele foi levado preso a bordo do navio Princesa Leopoldina, no Rio de Janeiro, onde permaneceu 52 dias.

Uma semana depois de voltar da prisão no navio, Mafra foi chamado ao Ministério da Guerra [antigo nome do Ministério do Exército, hoje, Comando do Exército], onde o general Lira Tavares o mandou para a reserva e até o expulsou.

Indignada, a esposa do tenente-coronel, Beatriz Segato de Alvarenga Mafra, enviou carta de protesto ao general Artur Costa e Silva, presidente do Comando Revolucionário. Trechos dessa carta foram publicados pelo extinto jornal Correio da Manhã.

Miséria territorial

Não havia estradas, nem saúde, e a educação pública era ainda embrionária. A Guarda Territorial tinha o poder de polícia, e só.

O orçamento do extinto Território Federal do Guaporé não passava de 140 mil cruzeiros. A região, desde a velha Província de Matto Grosso, aparecia inteira no mapa do Brasil, mas dificilmente recebia do governo federal o que tinha direito para custeio, desenvolvimento social e investimentos.

Abelardo Mafra veio para cá como “tábua de salvação”, pois acumulava experiência administrativa bem-sucedida anteriormente, no Território Federal de Fernando Noronha.

Em tempo de migalhas financeiras para territórios federais e filiado ao Partido Trabalhista Nacional (PTN), ele chegava a Porto Velho sem que a população soubesse exatamente por que fora perseguido.

Mafra deixou escapar o “matador de mendigos”

Raivoso, o Comando da Revolução de 1964 cassou o tenente-coronel pelo Ato Institucional nº 1, que atingiu 25 militares paraquedistas, dos quais, dez demitidos e 15 reformados. Desses 25, quatro teriam participação direta no movimento fracassado para prender o governador da Guanabara, Carlos Frederico Werneck de Lacerda [1961-1965], em 4 de março de 1963.

Lacerda, a mais forte voz da direita brasileira entre os anos 1950 e 1960, era ótimo orador, mas controvertido ser humano no campo social. Com o objetivo de “limpar a cidade”, ousou acabar com os mendigos do Centro e Zona Sul do Rio de Janeiro, matando-os.

No começo de 1963 uma equipe do jornal Última Hora, liderada pelo Luarlindo Ernesto Silva, seguiu um comboio policial e flagrou agentes jogando mendigos de cima de uma ponte. Os jornalistas conseguiram salvar uma das vítimas, e a partir de seu depoimento, pulicou uma série de reportagens desnudando o governo lacerdista. Isso resultou em CPI, que constatou mais de 50 casos de desaparecimentos de moradores de rua.

O golpe civil-militar de 1964 fez a CPI ser arquivada.

Mafra era, então, assistente do comandante do Núcleo da Divisão Aeroterrestre, general Alfredo Pinheiro Soares Filho, e fora designado para a operação de prisão de Lacerda, junto com o comandante da Companhia de Engenharia, major Rodovalho Alves dos Reis.

Inimigo de Getúlio Vargas

Inimigo político do ex-presidente Getúlio Dornelles Vargas, foi o grande coordenador da oposição à campanha dele à presidência em 1950 e durante todo o mandato constitucional do presidente, até agosto de 1954.

Uniu-se a militares intervencionistas e aos partidos oposicionistas (principalmente a UDN) num esforço conjunto para derrubar o presidente, por meio de acusações que publicava em seu jornal, Tribuna da Imprensa. Vargas suicidou-se em seu quarto, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, que era o Distrito Federal brasileiro.

Um dos articuladores civis do golpe de 1964, em 1966 Lacerda fora golpeado com a prorrogação do mandato do primeiro presidente no regime militar, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. E em novembro daquele ano, após ter sido perseguido pelo regime que ajudou a criar, lançou o movimento de resistência denominado Frente Ampla, liderado por ele e por seus antigos opositores João Belchior Marques Goulart e Juscelino Kubitschek de Oliveira. Mas a “Revolução” cassou seu mandato em dezembro de 1968.

Apoiou estradas, mineração, seringueiros e indígenas

Em seu segundo governo, o tenente-coronel Mafra criou a Escola Artesanal de Guajará-Mirim, na fronteira brasileira com a Bolívia; reabriu a olaria do governo, asfaltou na Capital a estrada do antigo aeroporto [atual Avenida Presidente Dutra] até o Porto Velho Hotel [hoje administração da Unir]; e retomou as obras da BR-364.

Antes de o governo federal proibir a lavra manual de cassiterita [minério de estanho], em 1970, Mafra reconhecia esse enorme potencial que se tornaria bem conhecido durante o governo de João Carlos Mader (1965-1969), que por sua vez apoiava a criação do Estatuto da Mineração.

Pela razão de o País já ter aberto as portas a grupos multinacionais que anteriormente “namoravam” o negócio e se contentariam com sócios nacionais na extração desse minério.

O ex-governador Mafra firmou convênio com a FAO [agência da ONU para o combate à fome e à pobreza por meio da melhoria da segurança alimentar e do desenvolvimento agrícola], contemplando a borracha.

A extração do látex em seringueiras nativas constituiu o primeiro ciclo de atividade econômica desde antes da criação do Território Federal do Guaporé.

Mafra apoiou o bispo da Prelazia de Guajará-Mirim, dom Francisco Xavier Rey, e o padre Luiz Roberto Gomes de Arruda a evitar o alastramento de doenças e massacres praticados por seringalistas contra indígenas. No auge da expedição de contato dos Pacaás novos para juntá-los a outros grupos da mesma etnia contatados nos anos 1950, a Prelazia socorria indígenas com gripe, fome e tuberculose.

Remédios para indígenas

Enviou um carregamento de remédios ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI).  A expedição partiu de Guajará em 20 de maio de 1961, dois meses após a sua posse.

Apesar de todo o esforço, os remédios escassos e a falta de salários levaram antigos expedicionários a abandonarem seus postos. Em agosto de 1963, na acareação com o diretor do SPI, Moacyr Ribeiro Coelho, a CPI da Câmara dos Deputados constatou que a expedição começara antes do governo João Goulart e, em nenhum momento, desmentira a morte de índios por pneumonia denunciadas pelo padre Luiz Arruda.

Humilhação

Em menos de três anos desde o primeiro ao segundo período de governo de Mafra, o Território Federal de Rondônia teve cinco governadores, todos com mandatos curtos.

Terceiro nessa nova fase, ele sucedeu a Paulo Nunes Leal, entretanto, a experiência administrativa de Mafra viera do período 1956-1957, quando era major e governava o Território Federal de Fernando Noronha, arquipélago pernambucano.

“Sem água potável, com apenas duas professoras, uma das quais pedira demissão da escola local, e uma associação civil que protegia a maternidade e a infância”, frisava. Em Fernando de Noronha funcionava o famoso presídio a céu aberto requisitado pelo presidente Getúlio Vargas em 1938 para abrigar 600 homens considerados subversivos, entre eles, o guerrilheiro e poeta Carlos Marighella.

Sumariamente exonerado do governo e excluído do serviço militar ativo, o tenente-coronel foi transferido para a reserva [o equivalente a aposentadoria para militares] e aposentado na patente de general de brigada, graças à anistia política em 1980.

Relatório de Mafra na internet revela que fora prestigiado por dois presidentes da República – Café Filho, autor de sua nomeação, e Juscelino Kubistchek que o visitou em Fernando de Noronha. Certamente, a experiência o credenciava a atuar na Amazônia.

No arquipélago, ele se deparou com a falta de coleta de lixo, moscas e mosquitos, planejou um forno crematório, e conseguiu três atuações de uma equipe do Departamento Nacional de Endemias Rurais para dedetizar todas as casas. Consta que, numa das vezes, exterminou 1.500 ratos.

Mesmo com larga folha de serviços e por mais que pudesse conciliar interesses, Mafra teve a vida pessoal devassada. Um simples telegrama dos Correios, entregue no Palácio Presidente Vargas, em Porto Velho, convocou-o com urgência a Brasília e de lá ele foi levado a um quartel do Exército no Rio, recebendo ordem de prisão.

Diversos oficiais superiores, capitães, tenentes e aspirantes – ao todo 112 – da Aeronáutica, Exército e Marinha – também ligados aos ex-presidentes Jânio Quadros e João Goulart também foram presos no mesmo período, entre 1964 e 1966.

Força “cutuba”

Em 1964, o então o secretário geral Eudes Campomizzi Filho, que conhecia bem a realidade rondoniense, assumia interinamente o cargo de governador com amplos poderes transmitidos por Mafra, mas nem esquentou a cadeira.

Desembarcava silenciosamente no aeroporto de Porto Velho o capitão de engenharia Anachreonte Gomes, procedente de Manaus, intitulando-se interventor e obrigando Campomizzi a deixar o palácio. Essa parte da história é amplamente conhecida.

A força eleitoral “cutuba” estava em Porto Velho, dominando a política. Já os pele curtas, na descrição do professor Valdir Aparecido de Souza, da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) foram assim denominados pela escassez de roupas e pela pobreza: “Eram os ferroviários, profissionais liberais e trabalhadores em geral, representados pelo médico Renato Medeiros, os renatistas.

Apelidado de “Corvo”, o ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda escapou de ser preso pela guarnição militar de Alvarenga Mafra
Vila dos Remédios, Fernando de Noronha, década de 1950: palco da primeira experiência exitosa do tenente-coronel que veio governar o Guaporé
Carta de protesto contra golpistas de 1964, escrita pela senhora Beatriz Segato de Alvarenga Mafra, saiu publicada no jornal “Correio da Manhã”
Território Federal do Guaporé aparece no antigo mapa histórico nacional; em 1956 é que o nome passou a ser Rondônia 

* HISTÓRIAS OCULTAS

  • Para encontrar um tanto a respeito de Abelardo Mafra, este repórter pesquisou o arquivo digital da Câmara dos Deputados e alguns jornais do Rio de Janeiro, entre os quais, A NoiteCorreio da ManhãO Jornal.
  • Da mesma forma, daqueles que governaram depois de 1956, as bibliotecas guardam pouca memória.
  • Tão distante do antigo Distrito Federal, no Rio de Janeiro, o território pouco peso possuía no Congresso Nacional, no Senado Federal e no Supremo Tribunal. A Amazônia era um zero à esquerda no contexto político, salvo a história de suas guerras e suas riquezas naturais que começavam a despertar o mundo ainda no século passado.

FOTO DA CAPA: Tenente-coronel Mafra conseguiu administrar com precário orçamento, mas foi vítima de perseguição política de militares superiores, do Rio de Janeiro

AUTOR: MONTEZUMA CRUZ





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