JURÍDICO DESCOMPLICADO
Amazônia: prisão e exílio de marinheiros negros

A luta pela abolição dos castigos corporais na Marinha brasileira e a vingança do governo

Por Vinicius Miguel - terça-feira, 28/01/2025 - 12h39

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Na manhã úmida de 22 de dezembro de 1910, o navio Satélite deixava a Baía de Guanabara carregando em seu porão centenas de homens que, dias antes, haviam desafiado a mais poderosa instituição militar do Brasil. Entre eles estava João Cândido, que ainda carregava no corpo as marcas da chibata que o transformara em líder da maior revolta da história da Marinha brasileira. O destino daqueles marinheiros seria a vastidão verde da Amazônia, uma punição que muitos considerariam pior que a própria morte.

A história desses homens começou semanas antes, quando os navios mais modernos da frota brasileira – o Minas Gerais, o São Paulo, o Bahia e o Deodoro – apontaram seus canhões para a cidade do Rio de Janeiro. Os marinheiros, em sua maioria negros e mestiços, exigiam o fim dos castigos corporais, uma herança cruel do período escravocrata que persistia na Marinha brasileira. A chibata, instrumento de tortura feito de couro cru trançado, deixava cicatrizes não apenas na pele, mas na dignidade daqueles homens.

O governo, inicialmente, cedeu às exigências. O Congresso Nacional aprovou rapidamente uma lei abolindo os castigos corporais, e o presidente Hermes da Fonseca prometeu anistia aos revoltosos. Era uma vitória aparente, mas que escondia uma vingança calculada. Enquanto os marinheiros celebravam nas ruas do Rio, os oficiais da Marinha planejavam sua retaliação.

A traição veio na calada da noite. Centenas de marinheiros foram presos em suas casas ou nos quartéis. Os que resistiram foram brutalmente espancados. João Cândido, o “Almirante Negro”, foi jogado numa cela escura e úmida na Ilha das Cobras, onde viu dezesseis de seus companheiros morrerem de asfixia. Mas o destino reservava algo ainda mais cruel para muitos dos sobreviventes.

O navio Satélite, quePartiu do Rio de Janeiro naquela manhã de dezembro, carregava não apenas marinheiros rebeldes, mas também presos comuns e prostitutas – uma prática comum da República Velha de “limpar” as cidades enviando seus “indesejáveis” para a Amazônia. O destino oficial era o território do Acre, recentemente incorporado ao Brasil após disputas com a Bolívia. Ali, os ex-marinheiros seriam forçados a trabalhar na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, conhecida como a “Ferrovia do Diabo”.

A viagem até a Amazônia era apenas o começo do martírio. Ao chegarem, os marinheiros encontraram um inferno verde onde a morte espreitava em cada esquina. A malária, a febre amarela e outras doenças tropicais dizimavam os trabalhadores. O calor sufocante, a umidade constante e os insetos tornavam o trabalho ainda mais penoso. A ferrovia estava sendo construída à custa de vidas humanas – estima-se que para cada dormente colocado nos trilhos, um trabalhador morreu.

Os relatos que sobreviveram daquele período são fragmentados, mas reveladores. Cartas interceptadas pela polícia mostram o desespero dos ex-marinheiros. Um deles escreveu: “Aqui, irmão, a morte é mais misericordiosa que a vida. Cada dia é uma luta contra a febre, contra os mosquitos, contra a loucura. Muitos dos nossos já se foram. Outros desapareceram na floresta, tentando fugir. Poucos voltarão para contar esta história.”

A escolha da Amazônia como local de punição não foi aleatória. Desde o período colonial, a região servia como local de degredo para presos políticos e sociais. A vastidão da floresta, o isolamento e as condições adversas faziam dela uma prisão natural. Para o governo, enviar os marinheiros para lá tinha um duplo propósito: puní-los e, ao mesmo tempo, afastá-los dos grandes centros urbanos, onde poderiam organizar novos movimentos de resistência.

A historiografia tradicional por muito tempo ignorou este capítulo da Revolta da Chibata. Os livros didáticos costumam encerrar a história com a suposta vitória dos marinheiros e a abolição dos castigos corporais. Mas os documentos descobertos nas últimas décadas, incluindo relatórios policiais, cartas e depoimentos de sobreviventes, revelam uma história muito mais sombria.

O destino dos marinheiros na Amazônia representa um padrão na história brasileira: a prática de usar regiões remotas como lugares de punição e exclusão social. É uma história que se repete em diferentes momentos, desde o período colonial até a ditadura militar, quando a Amazônia novamente serviu como local de exílio para presos políticos.

Dos marinheiros enviados para a Amazônia, poucos sobreviveram para contar sua história. Alguns conseguiram fugir e se estabeleceram em comunidades ribeirinhas. Outros morreram na construção da ferrovia ou sucumbiram às doenças tropicais. Muitos simplesmente desapareceram na vastidão da floresta, seus destinos para sempre perdidos na névoa do tempo.

Esta história nos lembra que a luta por direitos humanos e dignidade no Brasil sempre foi marcada por avanços e retrocessos dramáticos. A Revolta da Chibata não terminou com a abolição dos castigos corporais na Marinha – ela continuou nas profundezas da Amazônia, onde homens que ousaram desafiar o sistema foram forçados a pagar um preço terrível por sua ousadia.

Hoje, mais de um século depois, as cicatrizes daquele período ainda persistem. A história apagada dos marinheiros enviados para a Amazônia nos lembra da importância de preservar a memória das lutas sociais e de estar sempre vigilante contra as formas de opressão que, como a própria floresta amazônica, têm o poder de engolir vidas inteiras no esquecimento.

Referências

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LOVE, Joseph. A Locomotiva: São Paulo na federação brasileira 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

MAESTRI, Mário. A Revolta da Chibata faz cem anos. Revista de História da Biblioteca Nacional, v. 5, n. 60, p. 28-31, 2010.

MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata: subsídios para a história da sublevação na Esquadra pelo marinheiro João Cândido em 1910. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

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VENTURA, Roberto. Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

MORGAN, Zachary R. Legacy of the Lash: Race and Corporal Punishment in the Brazilian Navy and the Atlantic World. Bloomington: Indiana University Press, 2014.

AUTOR: VINICIUS MIGUEL





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